sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Reinaldo Azevedo - Um texto em defesa do Supremo

Folha de S. Paulo

Não fosse o malhado inquérito 4.781, o país estaria à mercê de hordas que pregam abertamente a ruptura institucional

Não tenho receio de um golpe de Estado. Temo um permanente estado de golpe. E isso não se esgota num jogo de palavras. Cultivamos uma certa crença mística nas nossas instituições e tardamos a reagir — refiro-me aos que pertencemos aos radares da sociedade, e a imprensa é um deles— àqueles que se organizam para assaltá-las. E noto que este texto se cingirá à democracia política. A social ainda está por ser inaugurada.

Penso no escarcéu que se fez quando, no dia 14 de março de 2019, o então presidente do Supremo, Dias Toffoli, abriu de ofício o correto e legal inquérito 4.781, que tem Alexandre de Moraes como relator. O país ainda vivia sob a égide da Lava Jato —esse “Fetiche da Destruição” que seduziu e ainda seduz tantas almas incautas—, que criou o ambiente ideal para a ascensão de um desordeiro destrambelhado.

Bolsonaro estava no poder havia menos de três meses. A reforma da Previdência chegara ao Congresso no dia 20 de fevereiro. Sem ela, os tais mercados teriam quebrado as pernas do fanfarrão antes que emitisse o primeiro insulto. A, vá lá, convergência entre os Poderes era fundamental para o mandato do próprio presidente.

Não obstante, a máquina de difamação dos Poderes e da democracia que o bolsonarismo havia montado ao longo de mais de três anos não refreou seu ânimo. Ao contrário. Ganhou musculatura. E restava evidente que, sem base parlamentar e sem articulação com atores políticos relevantes, o governo buscaria arrancar por meio do berro e da intimidação o que não conseguia por meio da negociação. Afinal, sobravam-lhe arruaceiros; faltavam-lhe interlocutores.

O Supremo se tornou o primeiro e principal alvo porque, afinal, ali estava o limite do Napoleão de hospício. Não é um Poder Moderador, mas é quem tem a última palavra sobre a Constituição. O general Augusto Heleno acredita que, acima da Carta, estão um cabo e um soldado, sem nem um jipe...

No 132º aniversário da República, nascida de um golpe, o regime de liberdade plena de organização e de manifestação no país ocupa exíguos 33 anos: da Constituição de 1988 a esta data. A crença mística a que me refiro no primeiro parágrafo, a exemplo de todas, é infundada: a liberdade plena, entre nós, é a exceção, não a regra.

Não fosse o malhado inquérito 4.781, o país estaria à mercê de hordas que hoje pregam abertamente a “ruptura institucional”, conforme mensagem que o próprio presidente mandou a seus sectários. Em 2019, a PGR, ainda sob o comando de Raquel Dodge, resolveu arquivá-lo, o que foi rejeitado por Moraes, com o apoio dos demais ministros.

Tardou para que a imprensa percebesse —e, até hoje, o reconhecimento é reticente e cheio de reservas— o que Toffoli e outros ministros do Supremo anteviram —e olhem que o então presidente do STF manteve relações cordiais com Bolsonaro: o nosso sistema de liberdades estava sob ameaça. A única barreira de contenção era o Ministério Público. E se ele não reagisse? E se a inércia, que já se verificava então, continuasse?

Infelizmente, involuiu-se para a conivência. A resposta à penúltima pergunta da entrevista concedida a esta Folha por Augusto Aras, procurador-geral da República, não faz sentido. Ainda não entendi por que Roberto Jefferson deveria ser livre para, por exemplo, incitar o assassinato de policiais, mas um colunista deveria merecer sanção legal por chamar Aras de “poste da República”. Ainda mais quando este se comporta como um poste diante de alguém que... incita o assassinato de policiais.

Com todos os defeitos —e não os terão o jornalismo, a academia e a assembleia dos santos?...—, este é um texto em defesa do Supremo. A ele coube conter os incensados arreganhos autoritários da Lava Jato, que avançou sob silêncios cúmplices, e é ele, hoje, a barreira em “defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.

Vai entre aspas trecho do artigo 127 da Constituição, que define as atribuições do Ministério Público. A liberdade ainda é a exceção na nossa história. Quem se dispõe, de fato, a protegê-la, inclusive da desídia dos omissos?

 

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