“Uma
pessoa sem memória ou é criança ou é amnésica. Um país sem memória não é
criança nem é amnésico — nem sequer país é.” A citação não é de nenhum sábio da
Antiguidade. Saiu da verve sempre inteligente de Mary Astor, a atriz de
Hollywood que imortalizou “O falcão maltês” nos anos 1930. Quando somada a
outra de autoria incerta, mas falsamente atribuída a Platão — “pode-se
facilmente perdoar uma criança que tem medo do escuro: a verdadeira tragédia da
vida é quando homens têm medo da luz”—, temos o Dia da Pátria planejado para
esta terça -feira.
O Brasil que Jair Bolsonaro exibirá no 7 de
Setembro deve marchar e incensar o “mito”, não honrar a memória do país. Para
tanto, deve esquecer as nações indígenas que em 2021 ainda precisam bater às
portas da História e do Supremo Tribunal Federal para não ser esquecidas.
Tampouco se verá, na marcha, referência aos mais de 580 mil brasileiros que
morreram de Covid-19 sem uma só palavra de compaixão do presidente. A ideia é
deletar, esquecer e tentar reescrever o que é inconveniente na História do
Brasil de hoje e de outrora.
O presidente também se enquadra na categoria “homem com medo da luz”, mas não só da luz do conhecimento. O medo maior é do clarão de investigações que mapeia a holding do clã Bolsonaro para surrupiar o Erário através da prática das “rachadinhas”, nome inocente do crime de recolhimento de parte dos salários de assessores parlamentares contratados para esse fim. De pai para filhos, de filho para mãe, o cipoal de práticas subterrâneas suspeitas a cada dia adquire mais visibilidade.
Ainda nesta semana, em entrevista a
Guilherme Amado e equipe do site Metrópoles, mais um ex-empregado da família
veio a público com denúncias da rachadinha atribuída a Ana Cristina Siqueira
Valle, ex-mulher de Bolsonaro e mãe de Jair Renan, o filho Zero Quatro do
presidente. Os detalhes narrados por Marcelo Luiz Nogueira dos Santos são
sórdidos e vingativos, além de não comprovados. Mas, ao não pedir anonimato e
deixar-se fotografar para a entrevista, o denunciante indica sentir-se seguro,
talvez pelo que tenha deixado de falar. De todo modo, em esfera mais sólida, as
investigações do Ministério Público do Rio de Janeiro, com foco em Carlos e
Flávio, e as incursões da CPI da Covid em Brasília, que sem querer esbarrou
numa liaison talvez dangereuse entre o lobista-mor de Brasília Marconny Faria e
o Zero Quatro, prosseguem seu curso.
É essa a tormenta bíblica de Jair
Bolsonaro, com outros tantos fios desencapados a apontar para o presidente. O 7
de Setembro nos moldes planejados lhe é necessário para manter acesa a ideia de
que “os nossos”, como diz o general Augusto Heleno, são o Brasil. Não são, nem
à força. O presidente pode relinchar patriotismo em Uberlândia, decretar a
supremacia de fuzis sobre o feijão, mas nada além de um confronto aberto
consegue apaziguá-lo. Sua linha de atuação segue o catecismo de mandantes a
perigo: levar seus seguidores a também optar pelo desconhecimento. É a tática
do nada perguntar, apenas afirmar. No caso da pandemia, são as perguntas que o
presidente não fez que determinaram a mortandade de brasileiros indefesos. Só
que o “privilégio” de não fazer perguntas é reservado àqueles que disso se
beneficiam, aponta a cientista social britânica Jana Bacevic. “Para os mais
vulneráveis e explorados”, diz ela, “os efeitos da Covid não são um tema
evitável, e sim uma realidade inescapável”.
Com o mundo em emergência de
sustentabilidade da vida, o aquecimento global a gritar na nossa cara, o milhão
de espécies animais a perigo, a contaminação de águas e solos, o êxodo forçado
de massas à deriva, a insegurança alimentar e as desigualdades obscenas da
humanidade — nada disso parece frequentar os medos de Jair Bolsonaro. Seu foco
imediato é o 7 de Setembro, fora ou dentro das quatro linhas da Constituição.
Por via das dúvidas, o Departamento de Estado enviou um alerta a todos os
cidadãos americanos residentes no Brasil para que mantenham low profile na
terça-feira, evitem as áreas de manifestações e mantenham cautela se estiverem
inadvertidamente próximos a protestos —“mesmo manifestações planejadas para ser
pacíficas podem virar confrontos”.
Qualquer pessoa, ensina um grande poeta do
século passado, pode aprender a pensar, a acreditar, a saber; mas nenhum ser
humano pode ser ensinado a sentir. Por quê? Porque sempre que você pensa, ou
crê, ou aprende algo, você é a soma de muitas outras pessoas; no momento de
sentir, você é apenas quem você é. Será que Jair Bolsonaro sabe quem é?
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