Como se sabe, as interpretações sobre o Brasil
compõem uma tradição de enorme multiplicidade em suas abordagens, nada uniforme
e harmônica, produzida em diversos momentos da sua história. Uma tradição que
ensejou embates inclinados tanto à conciliação quanto ao rechaço a ela. Um
paradoxo nem sempre percebido nas disputas políticas e culturais que se
desenrolam no presente. Pensar o Brasil nunca foi apenas um exercício acadêmico
ou intelectual. Trata-se de um debate que alimenta, o tempo todo, projetos que
visam o futuro do país.
O Brasil, seguramente, não é para principiantes. Contudo, não seria absurdo pensar, ultrapassando o senso comum, que tal asseveração poderia ser aplicada a inúmeros países, dos EUA à Rússia, da China ao México, do Afeganistão à Bolívia, apenas para mencionar alguns exemplos. Em todos eles há incógnitas a serem decifradas e seus problemas atuais não são nada simples, como temos visto.
É
preciso estabelecer também um questionamento a respeito do exagero de que o
Brasil guarda uma excepcionalidade superlativamente distinta de outras
experiências históricas, com seus maneirismos típicos dos quais o “jeitinho” ou
a “gambiarra” são incensados ad nauseum. Além de
um ar de troça e menosprezo, há nesse tipo de leitura uma soberba que visa
desacreditar a tarefa do pensamento na compreensão do país bem como do seu
lugar no mundo. Essa forma de conceber o país é inútil e improdutiva diante dos
desafios civilizatórios que temos diante de uma mundialização que se impõe a
cada dia. Se o Brasil for apenas isso estamos fritos.
O
realismo nos indica que, para pensar a experiência histórica brasileira,
isolando os esquemas sociológicos abstratos, o exercício da comparação é vital.
A equalização ao tempo dos contemporâneos não poderá ser sequer vislumbrada
caso não se reconheça que a vida social e política, a economia e os valores
civilizatórios são hoje História global.
Seria importante pensar intelectualmente o Brasil por meio de uma análise capaz
alocá-lo num quadro comum de problemas de natureza interdependente, entre os
quais pode-se mencionar os desafios da consolidação da democracia, da inserção
na globalização da defesa e afirmação da sustentabilidade ecológica.
Embora
não se possa dizer que exista uma linhagem do pensamento brasileiro seguindo
essas indicações, há quem já a percorra sob uma chave de leitura que afirma
analiticamente que a sobreposição, combinação e síntese entre a matriz ibérica
e uma tradução particular do americanismo deram ao país a morfologia da sua
formação social. A partir dessa chave, o Brasil pode ser pensado concretamente,
ainda que essa não seja uma tarefa exclusiva do pensamento social e de seus
intelectuais. A complexidade que daí deriva supõe a recusa à adoção da
estratégia de um “tempo exaltado” como solução dos nossos dilemas históricos ao
se sugerir, como faz Luiz Werneck Vianna, a proposição de “exploração do
transformismo ‘de registro positivo’” como a melhor indicação para a
compreensão dos “processos societais novos na sociedade brasileira (…) depois
da institucionalização da democracia política em meados dos anos 80”[1].
O
Brasil moderno se fez em meio às disputas intelectuais e políticas pela
hegemonia no andamento da sua “revolução passiva”, uma história de paradoxos,
contradições e incompletudes. Até mesmo movimentos que buscaram um caminho
modernizador e democrático, como foi o Modernismo de 100 anos atrás,
vivenciaram isso e, de acordo com Vinicius Müller, acabaram produzindo “uma
nova situação de exclusão ou, no mínimo, de diferenciação, entre os membros
iluminados da intelligentsia e aqueles que mesmo formando uma grande parte do
país, são, segundo esse olhar, analfabetos políticos, ignorantes religiosos,
facilmente manipuláveis e/ ou pouco conhecedores da própria história”[2].
Que
país é esse? se perguntava um atormentado
Renato Russo numa de suas canções no final dos anos 1980. Décadas à frente,
ainda perplexos, somos nós que indagamos: que país é esse que entronizou
Bolsonaro? Não há como não reconhecer que o Brasil sob Bolsonaro é sintoma evidente
de uma história que precisa ser decifrada. Não pode ser visto como um
parêntesis. Ele já estava aí, mas não foi percebido em sua barbárie e no seu
espantoso espelhismo antiglobalista. Não será possível superá-lo,
verdadeiramente, apenas apertando os botões da urna eletrônica, embora esse
seja um passo necessário e imprescindível.
*Professor
Titular de História da UNESP-Franca-SP
[1] VIANNA,
L. W. A revolução passiva – iberismo e americanismo no Brasil.
Rio de Janeiro: Revan, 1997, p. 10.
[2] MÜLLER,
V. A História como presente. Brasília: FAP, 2020, p.
191-2.
(Publicado
originalmente em Política Democrática Online, n. 35,
setembro de 2021, p.09-11)
Nenhum comentário:
Postar um comentário