domingo, 5 de setembro de 2021

Paulo Fábio Dantas Neto* - Alfabeto político para desarmar golpe

O 7 de setembro de 2021 já está sendo vivido há semanas, como se algo de impactante, quem sabe decisivo, esteja para nos acontecer. A agitação e propaganda bolsonaristas enfatizam a data não para nos lembrar dela como a do parto consumado de um país e sim para brandi-la como ameaça de vir a ser a do ato inaugural de seu apocalipse. Como aves de mau agouro, nada cavalheirescas, militares sem honra e vivandeiras civis atiçam uma besta-fera que imaginam habitar o seu (lá deles) Brasil profundo. O bolsonarismo quer nos fazer crer que será um dia D, prenúncio de uma hora H. Ultimato é a palavra mais recente, proferida na Bahia para reiterar uma ameaça terrorista que se tornou rotina.

Saberemos, em três dias, se o 7 de setembro desse ano será dia de batalha decisiva, ou se será de mais uma, rumo ao assalto ao nosso Capitólio ou à desmoralização dos assaltantes. Mas desde já sabemos que haverá batalha, não apenas porque o palácio trabalha nisso obstinadamente, mas também porque não falta, na oposição, quem a queira travar na hora e lugar escolhidos pelo adversário, mesmo sabendo que tipo de armas ele se dispõe a usar.

Paciência! Imprudentes fazem parte de qualquer conjuntura crítica e seu voluntarismo, embora aumente os perigos, não deve nublar a visão geral do processo, que segue seu compasso. Inexoravelmente, chegará a hora do basta, o ponto G da cidadania reencontrando o seu país. Ele, o processo, mostra que Bolsonaro perde o jogo na política. Está difícil ao incumbente reverter a situação dentro das regras. Sua rejeição não parece reversível a ponto de voltar a ser candidato competitivo numa eleição presidencial em dois turnos. Mas ainda não podemos afirmar que Bolsonaro ficará fora do segundo turno. Essa é a tendência, mas até se tornar realidade há muita política por fazer.

Bolsonaro previamente eliminado da competição, seja por cometer subversão das regras, seja por não conseguir classificação, é um horizonte institucionalmente tranquilizador. Sua presença no segundo turno é risco dobrado para a República e para a Democracia. No primeiro turno, eleições concomitantes para o Congresso introduzem uma complexidade que, de certa forma, é aliada de alguma moderação. Bolsonaro não poderá ignorar totalmente as eleições parlamentares. Arrisca-se a perder mais rápido se tentar melar um jogo eleitoral que interessa a seus aliados também. Mas chegando ao segundo turno, ainda que sem chance de vencer (ou talvez justamente por isso), restaria o embate direto com o presidenciável adversário e com governadores inimigos. Aí sim, cessaria qualquer limite.

Virtualmente derrotado pelos dedos inclementes dos eleitores, não terá motivo para adiar o confronto final para depois das eleições, como tentou Trump. Com outras armas que não urnas, ele já o prepara como se fosse acontecer agora.

É com essa contingência que democratas devem se preocupar, para ela devem se preparar. O ideal seria que tirar Bolsonaro do segundo turno fosse uma preocupação de todos eles. Mas, como sabemos, o ideal não existe, por definição. Para a esquerda petista, o melhor é Bolsonaro chegar ao segundo turno ensanguentado pela rejeição para levar uma surra eleitoral histórica. Com ela, a extrema-direita seria exorcizada e a esquerda redimida de seus próprios pecados. Mas como exorcismo e pecado não são figuras apropriadas à política, essas não são expectativas realistas. A primeira menos ainda, pois, mesmo que o eleitorado promova a suposta remissão, é, no mínimo, duvidoso que uma derrota acachapante tire o bolsonarismo da cena pública. É previsível que se consolide como movimento subversivo, que não ganha eleição, mas é capaz de promover desordem.

Desse modo, o acordo possível entre democratas de direita, centro e esquerda é o de não agressão mútua. Mas tirar Bolsonaro do segundo turno é missão precípua dos partidos do centro político, de boa parte do centrão e dos que já são (ou ainda serão) ex-aliados de Bolsonaro dispostos a consertarem o erro de 2018. Para evitar mal-entendido esclareço: erro cometido no primeiro turno - quando essas forças se dispersaram, em atenção aos seus próprios umbigos, em vez de se unirem para falarem ao país - e não no segundo turno, quando a Inês já era morta.

Há sinais de que essa agregação é hoje mais possível do que era há semanas atrás. Com variações, a depender do instituto de pesquisa, a soma de intenções de voto em pré-candidatos do centro já pode mirar a marca de Bolsonaro e torna mais remota a hipótese de vitória de Lula no primeiro turno. Para não se prender a quantitativos a mais de um ano da eleição, a análise deve reparar no sentido geral dos movimentos dos vários atores políticos no plano das articulações, que é o sentido da unidade interna ao campo. Mas ainda é um desafio o alargamento dessa ideia a ponto de sensibilizar o eleitorado. A entrada do presidente do Senado no rol das cogitações e sua pontuação em pesquisas, ombreado aos demais nomes postos bem antes do dele, indicam que não existe apenas um, mas pelo menos dois espaços de passagem à atitude unitária e a um discurso pacificador.

O primeiro espaço é oposicionista, de atores que lutam em seus partidos para cercarem o governo, não lhe darem passagem, contestando-o a partir de fora. Quem mais tem perseverado nesse caminho é o ex-ministro Mandetta. Há outros nomes no dito centro, até mais expostos que o dele. Mas não é missão fácil convencer que Ciro Gomes, ou João Dória, possam se conduzir fluentemente como pombas, perante os eleitores.

O outro espaço ao discurso pacificador começa dentro do campo governista e anexa, à sua identidade, a etiqueta de terceira via, que é apelo antigo do espaço oposicionista de centro. Nas últimas semanas o alargamento desse segundo espaço tem se mostrado mais plausível, pelo estilo e sentido dos movimentos de Rodrigo Pacheco e, também, porque os desacordos entre o PIB e o governo começam a passar do sussurro à fala sem, contudo, mostrarem inclinação ao grito. Assim, o ponto de equilíbrio do discurso tende a ser morno e reforçar, em atores e partidos, uma atitude mais conservadora, ao talhe de Pacheco.

Enquanto isso a impaciência assola o bolsonarismo e o faz atuar para elevar muito a temperatura política exortando seguidores a acertos de contas análogos a um juízo final. Em que exemplos da História se miram? A que momento da trajetória desejam retroceder? Diz-se que ao regime militar de 1964, mas quando se olha para lá vê-se autocracia cerceadora das instituições políticas e da sociedade civil combinada à construção institucional de instâncias gerenciais do Estado. Recuemos à ditadura do Estado Novo, à oligarquia da nossa Primeira República ou à elite construtora do Estado Nacional durante a monarquia. Não vemos nada que se assemelhe à dinamite ora em uso por essa estupidez bolsonarista. Ignorância inédita, em sua vulgaridade e boçalidade. É como se filtros civilizatórios estivessem sempre presentes em nossa história política e nos protegessem desse tipo de apocalipse.

Que o dia 7 passe em paz, com um grito de independência contra as pulsões de morte. Sem nada de dia D, nem de hora H. Nas eleições, a nação encontrará o seu ponto G

*Cientista político e professor da UFBa

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