domingo, 5 de setembro de 2021

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Será preciso ter responsabilidade no 7 de Setembro

O Globo

O presidente Jair Bolsonaro está certo quando diz que seus apoiadores têm o direito de ir e vir, de organizar manifestações como as previstas para o Dia da Independência nesta terça-feira e de defender as políticas adotadas por seu governo. Do ponto de vista político, o presidente também tem o direito de chamar bolsonaristas para a rua. É um momento em que ele precisa demonstrar força diante de uma realidade inóspita.

A inflação segue alta e corrói a renda, o desemprego continua afetando mais de 14 milhões de brasileiros, indícios de maracutaias não param de sair da CPI da Covid, a crise hídrica e a falta de planejamento fizeram o preço da conta de luz disparar, pondo em risco a recuperação econômica em 2022. Empresários, sempre reticentes em criticar quem está no governo por receio de represálias, têm saído a público com manifestos em favor da democracia, uns mais, outros menos explícitos nas críticas ao presidente.

Precisa ficar claro, porém, tanto a Bolsonaro quando a seus seguidores, que seus direitos, como os de todos os brasileiros, têm limites. Podem ir e vir, mas não dirigir a 120 quilômetros por hora dentro das cidades. Desfrutam a liberdade de expressão, porém não podem atacar as instituições que sustentam o ordenamento democrático. Infelizmente, dado o retrospecto, faz-se ainda necessário explicitar também que não é permitida a participação de militares da ativa em manifestações políticas.

Motivos para preocupação com o que acontecerá no 7 de Setembro não faltam. Como já foi dito sobre Donald Trump, Bolsonaro é também uma “fábrica de confusão”. Afirma ser um democrata e respeitar os resultados eleitorais, nega apoiar a ideia de um golpe e, ao mesmo tempo, dá sinais claros de pensar o oposto. Quem afirma “jogar dentro das quatro linhas da Constituição” não pode condicionar sua obediência a nada. Não tem “mas”.

Continuando no terreno das metáforas futebolísticas, o presidente parece agir como um técnico de futebol que jura respeitar as regras do jogo, mas treina seu time com lições de luta livre, não para obedecer às decisões do juiz. Que fique claro: todas as precauções devem ser tomadas para que as manifestações ocorram em clima de paz. Caso contrário, a responsabilidade recairá sobre o próprio presidente.

Na sexta-feira, Bolsonaro disse que o 7 de Setembro será um ultimato para “um ou dois”, o que foi entendido como referência a ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Dias antes, havia discursado que seus apoiadores mostrarão “quem manda no Brasil”. “Nós temos a obrigação de fazer aquilo que vocês determinam.”

O presidente precisa entender duas coisas: 1) ministros do STF não podem receber, sob nenhuma hipótese, ultimato do inquilino do Alvorada; 2) por maiores que sejam as manifestações, o nível de apoio ao governo não chega a um quarto dos eleitores. Várias pesquisas de opinião atestam que os bolsonaristas são minoria. Ter a capacidade de lotar um estádio não significa ter a maior torcida. A democracia, é bom não esquecer, precisa proteger os direitos de todas as minorias, mas ainda é o governo da maioria.

Projeto de dispensa de alvará beneficia pequenos negócios

O Globo

A prefeitura do Rio enviou à Câmara de Vereadores o projeto de lei de Liberdade Econômica do Município propondo, entre outras coisas, a eliminação da necessidade de alvará para atividades de baixo impacto, ressalvada a obrigação de inscrição na Secretaria Municipal de Fazenda e Planejamento. Paralelamente, implantou o Licenciamento Integrado, que reduz de 267 para 30 dias o tempo para emitir uma licença de obra.

Dispensar o alvará beneficia em especial pequenos negócios, tocados por quem tem espírito empreendedor ou foi forçado ao trabalho por conta própria depois de perder o emprego na pandemia. Como mostrou reportagem do GLOBO, muitos moram em favelas. Estão entre os 16 milhões que, em todo o país, movimentavam quase R$ 10 bilhões por mês antes da Covid-19, segundo levantamento do Instituto Locomotiva, que estima uma queda de 23% nesse valor. Quase metade (48%) diz ter alguma renda com negócio próprio. E a massa de renda é maior que o consumo de países como Paraguai, Bolívia ou Uruguai.

É o caso dos fornecedores de quentinhas para vizinhos que precisam emitir nota fiscal caso surja a oportunidade de prestar serviço a empresas. Ou de pedreiros obrigados a se formalizar para ter acesso a crédito.

O consenso de que a burocracia atrapalha o crescimento do Brasil é tão antigo — e reiterado por pesquisas periódicas —, que o país já viveu o paradoxo de criar, em 1979, um ministério para reduzir os entraves aos cidadãos e agentes econômicos em sua relação com o Estado. O Ministério da Desburocratização teve vida curta e foi extinto em 1986.

O Doing Business 2021, estudo do Banco Mundial com apoio do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), da Federação Brasileira de Bancos (Febraban) e da Confederação Nacional do Comércio, mostrou em junho deste ano que as empresas brasileiras gastavam, em média, 1.493 horas por ano para pagar impostos, um recorde mundial. A pesquisa confirmou que o Brasil tem desempenho pior que outros países em aspectos fundamentais para quem empreende: abertura de empresas, obtenção de alvará de construção, registro de propriedades e execução de contratos.

Espera-se que a Câmara do Rio aprove a dispensa do alvará. Quem perdeu o emprego na pandemia e trabalha por conta própria tem pressa e não pode ficar eternamente excluído dos benefícios da formalização. Precisa que o poder público seja um facilitador para gerar renda própria ou dos terceiros que venha a contratar. Da mesma forma que grandes empresários, com a diferença que estes têm mais condições de reagir à cobrança de impostos elevados e às exigências absurdas do Estado.

Se a brutal desigualdade brasileira ficou escancarada pela pandemia, a burocracia só tende a torná-la ainda mais perversa.

Um Executivo que ignora o Legislativo

O Estado de S. Paulo

Em vez de realizar o trabalho de coordenação política junto ao Congresso, tão próprio do regime presidencialista, Jair Bolsonaro opta por atalho falso

O bolsonarismo difunde o discurso de que os outros Poderes não deixam o presidente Jair Bolsonaro trabalhar. A realidade é exatamente a oposta, como mostra a recente publicação da Medida Provisória (MP) 1.065/21, que instituiu um novo marco legal do transporte ferroviário. A um só tempo, o ato revela exercício abusivo do poder presidencial e descaso com o trabalho do Congresso, que vem estudando o assunto das ferrovias desde 2018.

Previsto na Constituição, o poder de editar medida provisória tem contornos precisos. “Em caso de relevância e urgência, o presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional”, diz o art. 62.

Medida provisória entra em vigor imediatamente e, caso não seja convertida em lei pelo Congresso no prazo máximo de 120 dias, perde sua eficácia. Não é, portanto, ato propício para estabelecer novo marco jurídico para determinado setor econômico. Isso exige estudo, debate e ponderação.

O poder previsto no art. 62 da Constituição não é uma autorização para o Executivo substituir o Legislativo, tampouco para forçá-lo a decidir sobre determinado assunto. Medida provisória é instrumento para enfrentar situações específicas, que sejam relevantes e urgentes.

A pretensão de criar marcos jurídicos por simples ato do Executivo é incompatível com a segurança jurídica. Além disso, é uma ilusão pensar que uma canetada do presidente da República, alterando de supetão a regulação de um setor da economia, seja capaz de promover a confiança e o dinamismo dos negócios.

Como se não bastasse o abuso de poder na edição da MP 1.065/21, o Palácio do Planalto ignorou o trabalho do Congresso a respeito do tema. Desde 2018, o Senado estuda um novo marco jurídico para o setor ferroviário, por meio do Projeto de Lei (PL) 261/2018.

De autoria do senador José Serra (PSDB-SP), o PL 261/2018 dispõe, entre outros tópicos, sobre a exploração indireta pela União do transporte ferroviário em infraestruturas de propriedade privada, autoriza a autorregulação ferroviária e disciplina o trânsito e o transporte ferroviário. A proposta do projeto é a adoção do sistema de licença para a exploração das ferrovias, e não mais o de concessão.

Como se vê, são assuntos complexos, que exigem especial cuidado. Depois de três anos de estudo e debate, o PL 261/2018 foi considerado, no mês passado, pronto para ser votado pelo plenário do Senado. Eis que, então, o Palácio do Planalto edita medida provisória sobre o tema.

Perante tal atitude, senadores da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado pediram ao presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), que devolva a MP 1.065/21 ao Executivo federal. A devolução é um meio de o Legislativo retirar, de imediato, a eficácia de medida provisória que, de forma patente, não preenche os requisitos constitucionais.

Em junho de 2020, o então presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), devolveu, por evidente inconstitucionalidade, a MP 979/2020, que autorizava a nomeação de reitores de universidades públicas e institutos federais sem consulta prévia ou lista tríplice.

A quem possa pensar que esse modo de atuar do presidente Jair Bolsonaro revelaria, ao menos, a boa disposição de enfrentar determinado assunto, vale lembrar que, a rigor, a edição abusiva de medida provisória expõe uma grave omissão por parte do Executivo. Em vez de realizar o trabalho de coordenação política no Congresso – tão próprio de um regime presidencialista –, Jair Bolsonaro opta por um atalho fácil e falso. Num Estado Democrático de Direito, assuntos complexos, tanto do ponto de vista técnico quanto do político, não são resolvidos por mera canetada.

Nessa omissão, vislumbra-se mais do que simples desídia em relação aos deveres presidenciais. Nota-se um modo autoritário de exercer o poder, como se a Constituição autorizasse o presidente da República a ignorar o Congresso. Ainda que Jair Bolsonaro não queira, o regime democrático exige a política.

A armadilha das commodities

O Estado de S. Paulo

Relatório da Unctad enfatiza ‘vontade política’ como primeira condição para superá-la

A dependência das commodities está associada a problemas como crescimento lento, estrutura econômica não diversificada, baixo desenvolvimento humano, volatilidade de renda, instabilidade macroeconômica e política, fluxos financeiros ilícitos, governança política e econômica pobre, baixo desenvolvimento social e alta exposição a choques como as mudanças climáticas ou pandemias.

Convencionalmente, diz-se que um país depende de commodities – bens primários, como metais, minerais ou produtos agrícolas – quando deriva delas ao menos 60% das suas receitas de exportação. Dois terços dos países em desenvolvimento (64%) são dependentes de commodities. Entre os países desenvolvidos, são apenas 13%.

Projeções econométricas mostram que, para países em desenvolvimento dependentes de commodities, é extremamente difícil sair deste estado. Não surpreende que um relatório recente da Conferência sobre Comércio e Desenvolvimento das Nações Unidas (Unctad) sobre a cadeia de commodities tenha sido intitulado Escapando da Armadilha da Dependência das Commodities através da Tecnologia e Inovação.

Segundo a Unctad, para desarmar essa armadilha os países em desenvolvimento precisam instaurar infraestruturas físicas e institucionais capazes de fomentar um ecossistema tecnológico que leve à produção de bens mais diversificados e sofisticados.

Fortalecer facilitadores da produtividade, como educação, infraestrutura e tecnologia, é precondição. “A existência de infraestrutura ‘dura’, como eletricidade confiável e conexão de internet, e de infraestrutura ‘suave’, como regras e regulamentos governando a inovação e a adoção de tecnologia, criação e fortalecimento de instituições de pesquisa e desenvolvimento, e estabilidade macroeconômica são necessárias para uma bem-sucedida transformação econômica baseada na tecnologia.”

Além destes facilitadores, ditos “horizontais”, a Unctad aponta os “verticais”. No caso de países dependentes de commodities “duras” (minerais e energéticas), os principais facilitadores são a capacidade fiscal e os investimentos nacionais e estrangeiros, enquanto para os dependentes de commodities “suaves” (agropecuárias) seria o acesso ao capital produtivo e às informações sobre inovações e tecnologia.

Omã, por exemplo, expandiu sua produção de combustíveis refinados, como gasolina e querosene, e diversificou petroquímicos, como álcool, fertilizantes e plásticos. Em quatro décadas, as políticas de diversificação e apoio à tecnologia e capital humano da Costa Rica fizeram com que suas principais exportações passassem da banana e café para microcircuitos e componentes de máquinas. A política industrial que resultou nos “milagres asiáticos” (Taiwan, Cingapura, Coreia, etc.) foi baseada em três pilares: atuação pública para criar novas capacidades em indústrias sofisticadas; promoção das exportações; e subsídios acompanhados de regras rigorosas de accountability e condicionados a uma forte competição nos mercados doméstico e internacional.

No caso do Brasil, todos esses exemplos são sugestivos. A participação das commodities (“duras” e “suaves”) na estrutura produtiva nacional tem crescido, enquanto a da indústria tem decrescido. Mas o País tem boas condições para revitalizar a sua indústria, como uma grande capacidade instalada e um amplo mercado interno, que o capacitam a atrair investimentos estrangeiros diretos e transferências de tecnologia. Comparado à maioria dos países em desenvolvimento, o Brasil tem uma economia mais diversificada e um nível elevado de desenvolvimento tecnológico.

A dependência das commodities é uma armadilha, não um destino. A Unctad enfatiza que a primeira e mais importante condição para superá-la “é uma forte vontade política e uma visão de desenvolvimento de longo prazo, junto a uma estratégia de implementação ambiciosa, mas razoável”. Na atual conjuntura, há um vácuo nesse sentido. É fundamental que em 2022 o eleitorado se prepare para cobrar dos candidatos políticas de estímulo às capacidades industriais, à inovação e à difusão de tecnologias.

Calçadas inseguras

O Estado de S. Paulo

A oferta de calçadas em São Paulo é inversamente proporcional à demanda

Uma das diretrizes do Plano Diretor Estratégico de São Paulo é a prioridade ao transporte coletivo e modos não motorizados, em especial o mais antigo e popular do mundo: a caminhada. A razão é intuitiva: deslocamentos a pé são mais saudáveis, econômicos, ecológicos, agradáveis e estimulam a convivência entre os cidadãos e sua interação com os bairros, sua arquitetura e seus serviços.

Mas, segundo um levantamento do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) da USP, em São Paulo a oferta das calçadas é inversamente proporcional à demanda: em geral, onde mais se anda a pé, é onde a largura das calçadas é menor.

Pela legislação municipal, calçadas seguras devem contar com uma largura mínima de 2 metros. No centro expandido, onde estão concentrados os empregos e o volume de deslocamentos a pé é alto, as calçadas efetivamente apresentam largura adequada, em média maior que 3 metros.

Fora isso, as zonas onde a maioria dos deslocamentos é feita a pé – em geral subprefeituras mais periféricas ao norte, leste e sul – são justamente as que apresentam maior porcentual de calçadas estreitas.

Previsivelmente, o padrão dos passeios em São Paulo reproduz desigualdades sociais: quanto maior é a concentração de habitantes de classe alta e brancos, mais largas as calçadas; quanto mais estreitas as calçadas, maior a concentração de pobres e negros. Mas justamente estes últimos são os que caminham mais.

A qualidade das calçadas não é mera questão de comodidade. Más condições podem ser letais: entre as vítimas do trânsito em São Paulo, os pedestres são as principais.

Segundo o levantamento Calçadas do Brasil do projeto Mobilize, São Paulo ocupa o primeiro lugar entre as capitais em termos de qualidade de calçadas. Ainda assim, está abaixo do mínimo aceitável em critérios como acessibilidade, conforto, segurança e, sobretudo, sinalização. Na maioria dos locais faltam bancos, espaços de descanso, abrigos contra chuva ou sol, além de rampas de acessibilidade, essenciais para cadeirantes ou carrinhos de bebês.

O CEM aponta três frentes de atuação para o poder público. A primeira se refere à responsabilidade pela gestão das calçadas. Pela legislação, a manutenção das calçadas é compartilhada entre a Prefeitura (responsável pelas calçadas do sistema viário estrutural e calçadas prioritárias, como as que margeiam escolas, hospitais, repartições, terminais de transporte e outros equipamentos) e os proprietários dos imóveis lindeiros (que respondem por mais de 80% das calçadas).

O Plano de Mobilidade de São Paulo, de 2015, identifica nessa divisão uma das causas da precariedade das calçadas, e recomenda que a gestão do espaço público viário seja responsabilidade única da Prefeitura. Isso exigirá uma legislação especial.

Enquanto ela não vem, o poder público pode assumir para si a gestão de calçadas estratégicas, como fez com as Avenidas Paulista e Faria Lima. Pode também promover campanhas de conscientização dos donos de imóveis, melhorar a fiscalização e aplicar termos de ajuste de conduta.

A segunda frente de atuação é a redução das desigualdades. As áreas periféricas precisam de mais atenção. Recursos existem. O Fundo de Desenvolvimento Urbano apresenta reservas da ordem de R$ 1 bilhão, das quais 30% podem ser destinados aos sistemas de transportes coletivos, cicloviário e de circulação de pedestres.

Mas, para que o trabalho de qualificação seja bem planejado e eficiente, é preciso que haja dados. Essa é a terceira área de atuação. O sistema de contagem de pedestres da Companhia de Engenharia de Tráfego, por exemplo, não abrange áreas periféricas.

Em 2021, está programada a revisão do Plano Diretor. A circulação de pedestres e seu meio, as calçadas, deveriam ser prioridades. Uma pesquisa do Metrô mostrou que 40% das viagens de carro percorrem menos de 2,5 km, ou seja, poderiam ser feitas a pé. Quanto maior for a apropriação das ruas e espaços públicos pelos cidadãos, maior será o estímulo à cidadania. E, por definição, quanto maior for o estímulo à cidadania, mais civilizada será a vida na cidade. --

A farda e a toga

Folha de S. Paulo

Brasil ganharia com regras para inibir a partidarização de carreiras de Estado

O Estado democrático moderno organizou-se em dois eixos. Das tarefas legislativas e da chefia das executivas ocupam-se agentes políticos periodicamente eleitos. Das burocráticas, judiciais e de segurança incumbem-se servidores admitidos por critérios técnicos e legais.

O horizonte dos primeiros, o do mandato, é curto. O dos segundos se prolonga na carreira. Espera-se dos políticos que tomem partido, compitam por ideias e doutrinas particulares. Já aos servidores estatais cabe atuar com neutralidade, universalidade e objetividade.

O sistema piora se esses dois campos se misturam. Ou degenera em tecnocracia, quando burocratas pretendem substituir a dinâmica política, ou em sectarismo e ineficiência, quando a partidarização penetra e corrói o serviço público.

Ameaça o Brasil este segundo risco, o do sequestro, pela lógica político-partidária, de corporações incumbidas de tarefas essenciais para os cidadãos. Policiais, juízes e membros do Ministério Público, ao perseguir objetivos eleitorais, sentem-se à vontade para rebaixar e instrumentalizar as carreiras.

Em momento oportuno, portanto, surge a proposta legislativa de impor um custo aos servidores de carreiras típicas de Estado que desejem concorrer a cargos eletivos.

O dispositivo, em discussão na Câmara dos Deputados, estabelece que são elegíveis apenas magistrados e integrantes do Ministério Público que tenham se afastado de seus cargos cinco anos antes do pleito.

A mesma regra se aplica a policiais civis estaduais e guardas municipais e, na União, a membros das polícias Federal, Rodoviária e Ferroviária.

No caso dos militares, da União e das PMs, o mecanismo em debate é um pouco diferente. Para poderem concorrer em eleição, precisam de um quinquênio de afastamento em relação ao início do processo de escolha de candidaturas e coligações, que ocorre em geral em meados do ano eleitoral. Quem for eleito passa à reserva da respectiva corporação.

No intuito de evitar mudanças abruptas nas regras vigentes —o que é cautela saudável num país acostumado a convulsões legislativas às vésperas de pleitos—, o texto da Câmara fixa em 2026 o início dos novos requisitos de elegibilidade.

Além desse projeto, o estímulo à separação entre as atividades políticas, de um lado, e as de segurança e da Justiça, do outro, seria reforçado com a proibição da nomeação de militares da ativa para cargos de natureza civil e com o estabelecimento de longa quarentena para que o procurador-geral da República e ministros de Estado sejam indicados para o Supremo Tribunal Federal.

Na República democrática, a toga e a farda funcionam como uma segunda pele. Não deveriam ser trocadas pelo paletó e a gravata dos políticos como se muda de camisa.

Apagão estatístico

Folha de S. Paulo

Aumento de mortes sem motivo determinado coincide com início da gestão Bolsonaro

A divulgação do Atlas da Violência 2021 trouxe novas preocupações acerca do quadro da segurança pública nacional. Afora os números elevados de assassinatos e a desigualdade racial e de gênero que marca a contabilização das vítimas, o levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontou um apagão nas estatísticas.

São desconhecidos os motivos de quase 17 mil mortes violentas em 2019 —que podem ter sido decorrência de agressão, homicídio, acidente ou suicídio, mas estão computadas como indeterminadas. Os casos saltaram de 12.310, no ano anterior, para 16.648, alta de 35%.

Os responsáveis pelo Atlas, o que inclui, além do FBS, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o Instituto Jones dos Santos Neves, ligado ao governo do Espírito Santo, afirmam que a piora na qualidade das informações ocorre após um período de 15 anos de aperfeiçoamento.

Uma causa apontada é a falta de revisão adequada dos dados por estados e, principalmente, pelo governo federal. O lapso coincide com o início da gestão de Jair Bolsonaro, que, como se sabe, tem atuado de maneira perversa na tentativa de estimular a brutalidade policial, afrouxar controles e ampliar a circulação de armas de fogo.

A falha nas notificações provavelmente mascara o número de homicídios, que caiu em 2019.

O relatório expõe também que a queda na violência letal nos últimos dez anos foi desigual, em desfavor da população negra. Para esta, a taxa por 100 mil habitantes reduziu-se em 15% entre 2009 e 2019; para os demais estratos, foram 30%. Negros são 76% das vítimas.

A taxa de mortalidade de mulheres pretas ou pardas, que em 2009 era 49% maior que a de mulheres brancas, indígenas ou amarelas, agora passou a ser 66% superior.

O perfil das vítimas continua predominantemente jovem, apesar de essa porcentagem estar caindo ano a ano. Entre os mais de 600 mil homicídios acumulados de 2009 até 2019, 53% dos mortos tinham entre 15 e 29 anos.

O Atlas também expõe a precariedade de informações sobre a violência contra a população LGBTQIA+. Denúncias ao Disque 100, do governo federal, que desde 2015 somavam entre 1.600 e 2.000 ligações anuais, caíram à metade em 2019.

Parece claro que a influência do atual governo, hostil às estatísticas, se faz sentir mais uma vez em área relevante, caso da identificação da violência na sociedade brasileira.

 

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