Valor Econômico
O governo é incapaz de criar fatos novos, a
política não
Há meses, o governo e seus fiéis indicavam
as condições para a vitória de Jair Bolsonaro, em 2022. O crescimento em “V” e
o final da pandemia, após vacinação em massa, seriam fatos novos. Não fossem
suficientes, haveria o dispositivo de força que permitiria ao presidente “jogar
fora das quatro linhas da Constituição” - seja lá o que isso signifique.
Nada disso se confirmou e a fé
fundamentalista foi abalada. Em 2022, a economia crescerá 1% do PIB, com
desemprego, inflação e aumento de juros. A crise social está nas ruas. Quanto à
pandemia, 600 mil vidas não ressuscitarão, o ressentimento ficará; a CPI da
Covid foi além do que se supunha e seu relatório terá efeitos importantes
dentro e fora do Brasil.
O dispositivo golpista foi, por ora,
desarmado: o STF asfixiou as finanças do “7 de setembro”; a hierarquia nas PMs
funcionou; as Forças Armadas resistiram às investidas do presidente; os
caminhoneiros isolaram a banda bolsonarista da categoria. Num desfecho
constrangedor, a carta que Michel Temer escreveu para Jair Bolsonaro assinar
foi irrefutável sinal de fracasso.
Ilusório esperar salvação por reformas que alterem o destino do governo. À parte a embromação dos líderes, o Congresso Nacional já funciona em modo eleitoral: sabe que reformas trazem desgastes imediatos e benefícios, quando ocorrem, no longo prazo. A razão imediatista é implacável. Improvável que a articulação política do governo a dobre.
Restará o caminho do aumento de gastos com
sinecuras e liberações de emendas, como contraparte ao compromisso da blindagem
presidencial prometida pelo Centrão. Também outros - importantes, sim, mas
limitados -, como o imprescindível “Auxílio Brasil”, estimularão despesas
feitas, antes, pela lógica do populismo eleitoral do que com o objetivo do
atendimento de graves problemas reais.
A alternativa do presidente e seu grupo tem
sido não se agarrar ao bote salva-vidas da mobilização do radicalismo da base
social. Um contingente que rodeia os 20% da população e que pode levar Jair
Bolsonaro ao segundo turno da eleição. Na esperança de reviver 2018, conta com
um embate contra Luiz Inácio Lula da Silva, de modo a se favorecer, mais uma
vez, do antipetismo.
É uma estratégia manjada, que não muda o
rumo do processo. Pesquisas indicam de que o clima da eleição de 2022 será
anti-Bolsonaro. As sondagens demonstram que, no segundo turno, o presidente
perderia para qualquer postulante; sendo Lula, hoje, o maior favorecido pelos
erros e pela rejeição ao governo. Na verdade, é Bolsonaro quem o viabiliza.
Com isso tudo, teremos pela frente quase 15
meses de um governo que sangra a caminho da derrota. Sendo a instabilidade
política e administrativa que provoca, exatamente, o fator que aprofunda seus
problemas. A realidade é que, em pouco menos de três anos de mandato, Jair
Bolsonaro criou à sua roda um ciclo vicioso, estéril de esperança.
Agentes econômicos buscam se antecipar e,
do seu ponto de vista, a perspectiva que vislumbram lhes atormenta. Precificam
um cenário em que atravessam uma montanha íngreme e, do outro lado, exauridos,
defrontam-se com um arco-íris em tons de cinza, cujo pote de ouro traz - como
assinalou o empresário Pedro Passos - a “inaceitável” reeleição de Jair
Bolsonaro ou a “indesejável” volta de Lula ao comando do país.
O primeiro, uma usina de crises incapaz de
superar os impasses que cria; o segundo, temido em razão de erros do passado e
da incerteza que ainda hoje desperta. “O que será seu governo?”, é a pergunta
de nove, em dez, reuniões realizadas por empresários e economistas. Num cenário
de desalento, aflitos, operadores econômicos acendem velas pelo milagre da
“terceira via”.
Improdutivo especular sobre vias sem nome,
que ainda não estão no Waze. Essa hipotética alternativa só terá futuro como
“segunda via”; para isso, carecerá de fatos novos. Espremida entre direita e
esquerda, terá pouco espaço para se expandir e ir ao segundo turno. Dependerá
da fragilização de uma das margens que a oprimem. Pelas pesquisas, o nome de
Lula está consolidado. Já à margem direita, pelos motivos acima, nem tanto.
O impeachment é pouco provável. Ao
apaniguado Centrão, fiel da balança na Câmara, nesse momento mais interessa o
governo frágil e dependente - e mais à frente, será tarde. Há sombras que não
se pode descartar: no TSE, se analisa a impugnação da eleição da chapa
Bolsonaro/Mourão. Mas, por enquanto, seria ocioso contar com isso.
Contudo, é bom lembrar que mesmo num
ambiente de poucas perspectivas, no Brasil, tudo é possível. Ulysses Guimarães
alertava que política é feita de fatos novos - consta que, reunido com amigos,
mantinha cadeira reservada à “sua excelência, o fato novo”. Ele pode tardar,
mas frequentemente aparece. E desorganizam tudo.
Objetivamente, a desidratação política de
Bolsonaro seria um desses fatos. E, como sem Bolsonaro não haverá antibolsonarismo,
uma nova segunda via poderia ser aberta com as máquinas do antipetismo. A
inviabilidade, legal ou política, do presidente se sentaria na cadeira
reservada pelo Doutor Ulysses. São lances possíveis, num jogo ainda pouco
previsível.
Lula é sabedor disso e dos riscos num
eventual governo. Hoje, não se sente pressionado e joga com a ansiedade dos
outros. Em 2002, empurrou a divulgação da “Carta ao Povo Brasileiro” até junho.
O presente, entretanto, é mais inclemente: mais cedo do que mais tarde, terá que
emitir sinais claros do que pretende. A quem o criticava por decidir apenas sob
pressão, Ulysses respondia: “sim, eu só decido sob pressão”. Sob pressão, Lula
também pode criar um fato novo. É bom ficar de olho no jogo.
*Carlos Melo é cientista político e professor senior fellow do Insper.
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