sexta-feira, 8 de outubro de 2021

Flávia Oliveira - Pimenta, saberes e ciência

O Globo

Eu nasci em 1969 de parto natural — atravessado, diga-se de passagem, por violência obstétrica travestida de resistência das mulheres negras à dor. Minha mãe tinha 34 anos e me amamentou até os 3 anos e 4 meses de idade. Ela contava com misto de orgulho e enfado sobre o tempo que passei pendurada em seus seios. Às gargalhadas, elencava as estratégias bizarras que adotou para provocar o desmame tardio, em tempos pré-Estatuto da Criança e do Adolescente. Aplicou curativos nas mamas, fingindo estar machucada; pincelou Merthiolate e Mercúrio Cromo; lambuzou pimenta. Parecia crendice, era ciência.

Dona Anna era baiana do Recôncavo. Nasceu e cresceu em Cachoeira. Migrou para o Rio de Janeiro para encontrar mãe, irmãs e irmãos em 1960. Da Bahia, além de régua e compasso, como cantou mestre Gilberto Gil, trouxe um repertório de saberes de cura. Para mal-estar digestivo e ressaca, recomendava água tônica; problemas de fígado, chá de boldo. Água tônica é dos refrigerantes mais antigos da História. Na origem, um par de enredos. Em 1638, a esposa do vice-rei espanhol teria adoecido no Peru. Foi diagnosticada com febre terçã, outro nome da malária, e tratada por indígenas locais com uma poção feita com casca de kina — daí o nome quinina. Durante o Império Britânico, soldados indianos tratavam a mesma doença misturando quinino à água gaseificada. Os ingleses levaram a fórmula para fábricas de bebidas e, em 1858, a patentearam.

Dia desses, eu e Isabela Reis, minha filha e parceira no podcast “Angu de grilo”, entrevistamos os irmãos e sócios e músicos (Leandro) Emicida e Evandro Fioti. Na conversa, tratamos da transmissão oral de conhecimento, dos saberes não reconhecidos, do conhecimento roubado dos povos tradicionais. Lembrei-me do boldo que minha mãe plantava, colhia, preparava e servia na forma de chá para cuidar de quem fosse. Fui saber das propriedades científicas do quinino e do boldo muito tempo depois da infância rodeada da sabedoria que, vinda da Bahia, aportou em Irajá, subúrbio carioca. Reivindicamos a restituição da potência esvaziada pelo racismo.

Visitei a memória do desmame quando li sobre a descoberta que rendeu ao nova-iorquino David Julius o Nobel de Medicina de 2021, dividido com Ardem Patapoutian, libanês radicado nos Estados Unidos. Professor na Universidade da Califórnia em San Francisco, Julius utilizou a capsaicina, composto químico responsável pela ardência e pela picância da pimenta, para identificar o sensor de calor das terminações nervosas da pele. Ele estudava a substância desde os anos 1990. Comeu muita pimenta. Ciente do efeito, decidiu buscar a proteína do corpo humano que, ligada à capsaicina, o provocava. Trata-se da TRPV1, que responde a qualquer molécula capaz de provocar calor e queimação.

A descoberta do professor Julius — bem como a do colega Patapoutian, relacionada à sensibilidade de pressão na pele — foi reconhecida pelo Comitê do Nobel como crucial para a compreensão de como os humanos percebem o mundo. É conhecimento a ser usado para desenvolver tratamentos contra doenças e transtornos, incluindo a dor crônica, que afeta quase um terço da população global.

Na série “Da África aos EUA, uma jornada gastronômica” (Netflix, 2021), o chef e escritor Stephen Satterfield investiga a influência africana nos hábitos alimentares dos americanos. No primeiro episódio, ele visita o Benim, na África Ocidental. Lá descobre que quiabo, inhame, arroz e pimenta são herança dos escravizados. Minha mãe estudou não mais que cinco anos na Bahia dos anos 1940. Como toda menina baiana, nasceu íntima dos efeitos da malagueta, ingrediente de pratos, molhos e conservas que preparou até morrer, aos 76, dez anos atrás. A pimenta de Dona Anna não me fez desistir de mamar, mas me legou um baú de memórias afetivo-gustativas que também curam. Mas ela nunca se imaginou próxima da ciência; jamais pôde sonhar-se cientista.

Há saberes e potência, ciência e riqueza nas tradições culturais, gastronômicas, religiosas, comportamentais dos povos nativos, diaspóricos, periféricos. Tanto conhecimento, se não desqualificado, depreciado, invisibilizado, afanado, renderia o bem viver a um planeta inteiro. Por isso, a luta por formação, oportunidade, inclusão, equidade entre mulheres e homens; brancos, negros, indígenas; héteros, homo, transexuais. Apartá-los é injusto, brutal, criminoso, desumano, imperdoável.

 

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