Folha de S. Paulo
Não proponho enforcar o último dono de
offshore com as tripas do último reacionário; até os vejo com certa piedade
O que o veto do presidente Jair Bolsonaro
à distribuição
gratuita de absorventes para estudantes pobres e mulheres em situação
de rua tem a ver com a Dreadnoughts Internacional, a inoxidável
offshore de Paulo Guedes, com patrimônio de ao menos US$ 9,55 milhões?
A propósito: Sérgio Rodrigues, colunista
desta Folha,
sinta-se desafiado a fazer um ensaio combinando o nome dessas empresas dos
ricos com seu grau de alienação da realidade. Ou de arrogância. Espero
responder à pergunta inicial no curso do texto.
Consta que o ministro está indignado com a proporção que tomou a notícia, não a fake news, de que ele tem a tal empresa nas Ilhas Virgens Britânicas. Compreenda-se a sua fúria. Ele contou tudo à Comissão de Ética Pública. Por alguma razão inexplicada, a dita-cuja não viu contradição entre a sua empresa (e as de Roberto Campos Neto) e a lei 12.813. Há ainda o Código de Conduta da Alta Administração Federal, que também veda tal prática.
Um endinheirado qualquer ter uma offshore,
devidamente declarada à Receita, não é crime. Quando se é ministro da Economia
ou presidente do BC, o ordenamento jurídico define a prática como ilegal. E o
código a considera antiética. Não se conferiu à tal comissão a faculdade de
reinterpretar os dois textos.
A escalada do dólar, que tira comida da
boca do pobre, deixa Guedes e Campos Neto mais ricos. A frase lhes pareceu,
assim, de um jacobinismo juvenil? É que a alienação ou a impiedade de alguns
ricos têm a idade da Terra e pedem o contraste. Ainda que a cotação da moeda
não guardasse nenhuma relação com decisões tomadas pela dupla —e guarda—, isso
estaria dado pela “árvore dos acontecimentos”.
Voltemos a falar daquele estrato social em
que meninas deixam de ir à escola porque não dispõem de produtos para a higiene
íntima. É bem provável que, num ambiente de prosperidade e de uma gestão
virtuosa da economia, as peripécias da dupla não fossem percebidas por aquilo
que são: um escândalo, antes de mais nada, moral, como apontei desde a primeira
hora no programa “O É da Coisa” e em minha coluna no UOL.
As offshores, por si, não fazem de Guedes
ou de Campos Neto larápios ou ladrões de dinheiro público. Ocorre que eles são
personagens centrais de decisões que têm consequências e não podem, pois, ter o
próprio patrimônio protegido das suas escolhas. O que este governo fez, por
exemplo, para minorar os efeitos da estúpida inflação de alimentos? O
câmbio inflacionou também o mercado de ossos.
Não proponho aqui enforcar o último dono de
offshore com as tripas do último reacionário. Eu até os vejo com certa piedade.
Não é que sintam prazer diante
da miséria. Eles simplesmente não a entendem como questão urgente. O
liberalismo à moda da casa —e peço escusas, leitor, por ainda acreditar numa
versão virtuosa— especializou-se em dizer por que os pobres teriam direitos
demais no Brasil. E jamais se ocupou de explicar as proteínas de menos.
Certamente há uma penca de hipócritas que
transformam o sofrimento dos pobres em mero discurso ideológico, advogando
soluções que seriam, antes de tudo, problemas. Não são nem meus interlocutores
nem meus opositores. No mais das vezes, diga-se, são irrelevantes no debate e
só servem para fazer a fama de cronistas vigaristas, que têm a grande coragem
de se opor a minorias militantes.
Sou um conservador em muita coisa. Um dos
traços do meu conservadorismo está em considerar que a coragem sempre será a
coragem contra os poderosos, nunca contra quem os contesta, por menos razão que
tenha ou por mais bobagens que diga. É a minha escolha há mais de 40 anos.
Estes tempos insanos, no entanto, deram à luz também este tipo ordinário: seu
destemor está em não ter receio de esfregar verdades na cara de quem nada pode.
Esses poderosos alienados não existem no
vácuo. Há um ambiente também intelectual que os explica, em que menina
pobre não menstrua. São, a seu modo, vítimas morais de sua concepção de
mundo. Mas jamais terão de se submeter ao sopão de ossos. Que as urnas tentem
corrigir os desatinos. E se não? O apocalipse não virá. Países não fecham;
países pioram. Que o Brasil melhore ao menos.
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