sexta-feira, 8 de outubro de 2021

José de Souza Martins* - Votorantim, cultura da herança

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Empresa familiar evitou correr risco de ser inviabilizada por falta de vocação dos herdeiros

Recente entrevista de Joana Cunha, na “Folha de S. Paulo”, com membros da família Ermírio de Moraes, do grupo Votorantim, trata de um dos temas mais desafiadores no modo de organização e gestão das empresas brasileiras. É o do potencial desencontro entre o direito de herança do patrimônio de família pelos herdeiros e o modo de herdá-lo sem destruir a empresa. São muitos os casos de empresas inviabilizadas por incompetência de herdeiros.

O mais que centenário grupo econômico fundado por Antonio Pereira Inácio, na mesma família desde então, é um caso significativo para compreender-se os fatores que lhe garantiram a sobrevivência durante tão largo tempo. Entre eles, o desenvolvimento de uma cultura inovadora no trato da relação entre capital e capitalista.

Longe do arcaísmo de impor ao herdeiro sem vocação empresarial a função de empresário e longe de pressupor que quem é dono é competente, a cultura de família da Votorantim desenvolveu esquemas de socialização dos herdeiros para diferentes funções na empresa. Para os que tiverem outra vocação, há no esquema a alternativa para conciliar o herdeiro sem vocação com seus direitos de sucessor. Ao seguir suas inclinações pessoais, vinculado ao grupo como acionista qualificado, não alienado, mas socializado como membro da família e do grupo econômico.

Há no país outros grupos econômicos que, de certo modo, têm sua própria cultura empresarial de família, como o grupo fundado por Maurício Klabin, um rabino, a família Moreira Salles, a família Setubal.

São famílias de empresários e intelectuais, gente culta, gente que redistribui sua riqueza distribuindo cultura, conhecimento erudito. São agentes da missão civilizadora que o capitalismo pode ter e pouco tem aqui no Brasil. A missão de emancipar o homem comum e todos de suas carências e limitações, de sua alienação social. São autores de um capitalismo socialmente inventivo, conciliando o lucro com uma versão civilizada do bem comum e do desenvolvimento social.

Frequentemente, aqui se erra porque há famílias de capitalistas que julgam que o capital está a seu serviço, usam-no de maneira imprópria e acabam perdendo o controle sobre ele. Na verdade, é a família capitalista que deve estar a serviço do capital.

Max Weber, em “A ética protestante e o espírito do capitalismo”, já havia mostrado que a vocação de empresário é um chamamento do capital a que se comporte em relação à riqueza não como seu dono, mas como seu servidor. Karl Marx, antes de Weber, já havia mostrado em sua análise do capitalismo que o capitalista, sociologicamente, é um funcionário do capital. É assim que ele se realiza.

A articulação entre a estrutura de parentesco da família de capitalistas e a reprodução ampliada de seu capital não é simplesmente uma questão econômica nem patrimonial. Além de sua regulação legal, herança envolve regras sociais e culturais, cuja compreensão depende da antropologia e da sociologia, e não propriamente da economia e do direito.

Sobretudo as regras da tradição e da sociabilidade que tratam diversamente o que é bem de família e o que é bem pessoal. Frequentemente, a falta de um modo de lidar com essa diferença desencadeia disputas de autoridade e precedência nas decisões do que fazer e como fazer com a empresa. O que pode levá-la à ruína.

Decisões no dia a dia da economia das empresas, na atualidade, devem ser tomadas com base em valores sociais e pressupostos de um senso comum insubmisso à tirania da economia.

Isso é complicado porque depende de uma consciência crítica, teoricamente fundamentada, que identifique na tradição da herança, para superá-los, seus fatores de dispersão, de desagregação e de desacumulação. Ou seja, os fatores anticapitalistas de um capitalismo tosco e subdesenvolvido como o nosso, que produz, ao mesmo tempo, grandes lucros e grandes problemas sociais.

O nosso é um subcapitalismo sem futuro propriamente capitalista, a não ser por meios politicamente violentos, como aliás pressuposto na ideologia do neoliberalismo. O que nos levará para um modelo econômico oposto ao modelo europeu, que vem se esboçando para a era pós-pandêmica, que poderá ser uma era de capitalismo com democracia e desenvolvimento social.

A entrevista sobre a cultura do herdeiro na família Ermírio de Moraes representa um esclarecimento sobre a criatividade sociológica na solução dos impasses que a questão da herança possa trazer ao empresário.

Os depoimentos que menciono tratam da criação de uma cultura empresarial baseada em técnicas de conciliação criativa com a estrutura da família. Mas tratam, também, de um capitalismo que, nas inovações desse tipo, é um capitalismo culturalmente dinâmico.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Linchamentos - a justiça popular no Brasil” (Contexto).

Nenhum comentário: