Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Empresa familiar evitou correr risco de ser
inviabilizada por falta de vocação dos herdeiros
Recente entrevista de Joana Cunha, na
“Folha de S. Paulo”, com membros da família Ermírio de Moraes, do grupo
Votorantim, trata de um dos temas mais desafiadores no modo de organização e
gestão das empresas brasileiras. É o do potencial desencontro entre o direito
de herança do patrimônio de família pelos herdeiros e o modo de herdá-lo sem
destruir a empresa. São muitos os casos de empresas inviabilizadas por
incompetência de herdeiros.
O mais que centenário grupo econômico
fundado por Antonio Pereira Inácio, na mesma família desde então, é um caso
significativo para compreender-se os fatores que lhe garantiram a sobrevivência
durante tão largo tempo. Entre eles, o desenvolvimento de uma cultura inovadora
no trato da relação entre capital e capitalista.
Longe do arcaísmo de impor ao herdeiro sem vocação empresarial a função de empresário e longe de pressupor que quem é dono é competente, a cultura de família da Votorantim desenvolveu esquemas de socialização dos herdeiros para diferentes funções na empresa. Para os que tiverem outra vocação, há no esquema a alternativa para conciliar o herdeiro sem vocação com seus direitos de sucessor. Ao seguir suas inclinações pessoais, vinculado ao grupo como acionista qualificado, não alienado, mas socializado como membro da família e do grupo econômico.
Há no país outros grupos econômicos que, de
certo modo, têm sua própria cultura empresarial de família, como o grupo
fundado por Maurício Klabin, um rabino, a família Moreira Salles, a família
Setubal.
São famílias de empresários e intelectuais,
gente culta, gente que redistribui sua riqueza distribuindo cultura,
conhecimento erudito. São agentes da missão civilizadora que o capitalismo pode
ter e pouco tem aqui no Brasil. A missão de emancipar o homem comum e todos de
suas carências e limitações, de sua alienação social. São autores de um
capitalismo socialmente inventivo, conciliando o lucro com uma versão
civilizada do bem comum e do desenvolvimento social.
Frequentemente, aqui se erra porque há
famílias de capitalistas que julgam que o capital está a seu serviço, usam-no
de maneira imprópria e acabam perdendo o controle sobre ele. Na verdade, é a
família capitalista que deve estar a serviço do capital.
Max Weber, em “A ética protestante e o
espírito do capitalismo”, já havia mostrado que a vocação de empresário é um
chamamento do capital a que se comporte em relação à riqueza não como seu dono,
mas como seu servidor. Karl Marx, antes de Weber, já havia mostrado em sua
análise do capitalismo que o capitalista, sociologicamente, é um funcionário do
capital. É assim que ele se realiza.
A articulação entre a estrutura de
parentesco da família de capitalistas e a reprodução ampliada de seu capital
não é simplesmente uma questão econômica nem patrimonial. Além de sua regulação
legal, herança envolve regras sociais e culturais, cuja compreensão depende da
antropologia e da sociologia, e não propriamente da economia e do direito.
Sobretudo as regras da tradição e da
sociabilidade que tratam diversamente o que é bem de família e o que é bem
pessoal. Frequentemente, a falta de um modo de lidar com essa diferença
desencadeia disputas de autoridade e precedência nas decisões do que fazer e
como fazer com a empresa. O que pode levá-la à ruína.
Decisões no dia a dia da economia das
empresas, na atualidade, devem ser tomadas com base em valores sociais e
pressupostos de um senso comum insubmisso à tirania da economia.
Isso é complicado porque depende de uma consciência
crítica, teoricamente fundamentada, que identifique na tradição da herança,
para superá-los, seus fatores de dispersão, de desagregação e de desacumulação.
Ou seja, os fatores anticapitalistas de um capitalismo tosco e subdesenvolvido
como o nosso, que produz, ao mesmo tempo, grandes lucros e grandes problemas
sociais.
O nosso é um subcapitalismo sem futuro
propriamente capitalista, a não ser por meios politicamente violentos, como
aliás pressuposto na ideologia do neoliberalismo. O que nos levará para um
modelo econômico oposto ao modelo europeu, que vem se esboçando para a era
pós-pandêmica, que poderá ser uma era de capitalismo com democracia e
desenvolvimento social.
A entrevista sobre a cultura do herdeiro na
família Ermírio de Moraes representa um esclarecimento sobre a criatividade
sociológica na solução dos impasses que a questão da herança possa trazer ao
empresário.
Os depoimentos que menciono tratam da
criação de uma cultura empresarial baseada em técnicas de conciliação criativa
com a estrutura da família. Mas tratam, também, de um capitalismo que, nas
inovações desse tipo, é um capitalismo culturalmente dinâmico.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Linchamentos - a justiça popular no Brasil” (Contexto).
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