O Estado de S. Paulo
Essencial é trazer o País para a realidade e as necessidades do século 21
Com escolha de reitores por Bolsonaro,
cresce tensão política nas universidades federais, diz a matéria de O Estado de
S. Paulo de 19 de setembro, assinada por Renata Cafardo. A regra é as
universidades encaminharem à Presidência uma lista de três nomes, eleitos
internamente, e a tradição era o governo sempre nomear o primeiro da lista. Em
1998, porém, o então ministro Paulo Renato Souza decidiu não nomear o primeiro
da lista da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que havia feito uma
campanha baseada em ataques ao governo de Fernando Henrique Cardoso, o que
levou a uma prolongada e desgastante greve da instituição. Dos 50 reitores
nomeados pelo atual governo, 18 eram os segundos ou terceiros, o que provocou, em
muitos casos, conflitos e protestos de professores, alunos e funcionários das
instituições.
Essa é uma das situações em que o que havia antes não era bom e a tentativa de corrigir o problema ficou pior. Antes não era bom porque as universidades públicas não são repúblicas autônomas que podem fazer o que querem, mas instituições financiadas pela sociedade para cumprir determinados objetivos de pesquisa, formação superior e outras atividades de interesse público. Seus dirigentes precisam, por um lado, ter o respeito e o apoio de suas corporações internas – professores, funcionários, estudantes – e, por outro, cumprir mandatos mais amplos, que, ao menos em princípio, devem ser supervisionados pelo Poder Executivo. O sistema de lista tríplice buscou conciliar esses dois objetivos – o Executivo nomeia os reitores, mas dentro de uma lista de pessoas escolhidas pelas instituições.
Todavia o processo de indicação da lista
tríplice muitas vezes se politiza e o primeiro acaba sendo quem foi mais capaz
de negociar apoios ou atender a demandas que podem ter pouco que ver com o
interesse público. Por esse sistema, as universidades não têm como trazer de
fora lideranças inovadoras, capazes de romper rotinas e acomodações. Temos
muitos exemplos de bons reitores nomeados por esse sistema, mas muitos
contraexemplos também.
O problema com a outra solução, de
simplesmente nomear um indicado com menos apoio, ou até mesmo alguém de fora da
lista ou da instituição, como tem sido proposto, é que o reitor de uma
universidade não pode ser um simples gerente, mas uma pessoa que precisa
liderar uma instituição complexa formada por profissionais de alto nível e
estudantes com suas aspirações e demandas, e não tem como fazer isso sem o
apoio e a participação de pelo menos uma parte importante de seus liderados.
A solução correta, adotada praticamente em
todo o mundo, é que os reitores sejam selecionados por comissões de busca
formadas por pessoas da instituição e de fora (do Ministério da Educação, de
agências de pesquisa, do governo local, representantes da sociedade civil,
etc.). É um trabalho delicado, que inclui editais públicos para que possíveis
candidatos se apresentem e um processo complexo de avaliação e consultas até
identificar pessoas capazes de combinar tanto a competência executiva quanto o
respeito e a cooperação dos setores mais significativos da instituição e da
comunidade acadêmica e científica do País.
Por trás da dificuldade com a escolha dos
reitores está a questão mais profunda do que se deve entender por autonomia universitária.
Ela deve incluir, desde logo, a liberdade de pesquisar e ensinar, mas também a
liberdade de administrar recursos e, sobretudo, de implementar políticas
inteligentes de administração de talentos, que são o principal patrimônio de
uma instituição de ensino e pesquisa. Isso requer, por exemplo, poder contratar
professores especialmente qualificados dentro e fora do País para liderar áreas
estratégicas e negociar seus salários, e afastar ou alterar os contratos dos
que não tenham bom desempenho ou atuem em áreas menos prioritárias, assim como
manejar com flexibilidade seus orçamentos, coisas que o regime de isonomia e
repartição pública a que estão submetidas impede. E deve incluir a liberdade de
cobrar anuidades de quem pode pagar e financiar quem não pode. Não se trata de
arbítrio, deve haver regras, mas flexíveis e internas a cada instituição,
fazendo sempre prevalecer o interesse público.
O outro lado dessa autonomia é um sistema
de financiamento público associado a desempenho em pesquisa, qualidade de
ensino, equidade, empregabilidade dos formados, impacto regional e outros
objetivos considerados importantes, devidamente monitorados por um processo de
avaliação distinto do já obsoleto sistema estabelecido em 2004, o Sinaes.
Sem uma reforma profunda, que devolva às universidades sua autonomia e as torne responsáveis por seus resultados, a questão de se os primeiros das listas tríplices devem ou não ser nomeados reitores perde importância. Como tantas outras coisas no Brasil, o dilema não deve ser entre voltar aos erros do passado ou manter os erros do presente, mas trazer o País para a realidade e as necessidades do século 21.
* Sociólogo, é membro da Academia Brasileira
de Ciências
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