sexta-feira, 1 de outubro de 2021

César Felício - Os sócios

Valor Econômico

Bolsonaro fraco dá ao Congresso liberdade para tudo

A fraqueza política do presidente Jair Bolsonaro conta com sócios fora da base do governo. Quem se beneficia ou recebe dividendos sabe que a reeleição no próximo ano parece improvável, o que é um estímulo a buscarem extrair agora tudo que é possível. Um novo presidente, em 2023, seja quem for, irá rediscutir em outras bases a relação do Executivo com o Congresso.

Nesta sociedade, não entram apenas Câmara e Senado, mas também Estados e municípios. Muito se fala das emendas de relator, as famosas RP-9, mas outro mecanismo que ilustra essa debilidade foi instituído em 2019. São as RP-6, as chamadas transferências especiais.

Com autoria da petista Gleisi Hoffmann e relatoria de Aécio Neves, o Congresso aprovou a PEC 105, permitindo que emendas parlamentares de caráter impositivo possam determinar a transferência de verba a Estados e municípios de maneira direta e praticamente sem amarras. Elas não são vinculadas a nenhum programa específico. O prefeito ou governador recebe o montante e está livre para gastar como quiser, desde que deste total 70% vá para investimento e 30% para custeio. Mas nem mesmo essa demonstração foi feita pelos beneficiários.

O deputado federal Vinicius Poit, do Novo, obteve um relatório do primeiro ano de aplicação desta transferência especial, em 2020. Ano, aliás, de eleição municipal. O governo da Bahia, comandado desde 2006 pelo PT, e 1324 municípios receberam por este instrumento R$ 621 milhões. Só 72 municípios prestaram contas em relatórios de gestão, sobre

R$ 24 milhões recebidos, ou irrisórios 4% do total. A maior dotação, de R$ 12,7 milhões, foi para o governo baiano, que não apresentou o demonstrativo de como o dinheiro foi gasto.

O relatório embasou a apresentação de uma representação ao Tribunal de Contas da União, pedindo à presidente da Corte, Ana Arraes, a instalação de um procedimento de tomada de contas especial. O valor transferido no ano passado é ínfimo frente aos R$ 15 bilhões das emendas de relator. Mas o simbolismo é forte. Não se trata de uma mudança em lei infraconstitucional após uma interpretação da consultoria legislativa de uma das Casas do Congresso. Neste caso, foi uma mudança constitucional, esculpiram em pedra.

Ontem, a Câmara aprovou mais uma liberalidade. Se o teto de gastos para o governo federal é um anátema, o mesmo não se pode dizer dos limites colocados para governadores e prefeitos. Por 372 votos a 13, passou um projeto de lei complementar que tira do teto de gastos local as emendas parlamentares e de transferências vinculadas a despesas específicas para Estados e municípios. Esse teto local nasceu como uma contrapartida à renegociação das dívidas com a União, que tiveram o pagamento alongado por 20 anos.

A feudalização do Orçamento, acompanhada da falta de transparência, ganha terreno, em meio a um governo que busca acima de tudo a sobrevivência. O projeto aprovado ontem, entretanto, vai um pouco além da transformação de cada deputado e senador em um barão a distribuir prebendas. Ele também libera do teto algumas transferências da União.

É evidente que um Congresso tão liberado a fazer o que quiser afasta a hipótese de um processo de impeachment. Em time que está ganhando não se mexe, e com Bolsonaro na presidência Câmara e Senado dão de goleada.

O presidente não é favorito para se reeleger, isto é claro, mas os hierarcas do Centrão são mestres em tirar as meias sem descalçar os sapatos. Ainda não é hora de desfazer as posições. Nem a derrota bolsonarista em 2022 é questão resolvida.

O conveniente esquema sofreu um tremendo abalo neste inverno. O presidente, em um lance populista clássico, não só procurou jogar as massas contra o Judiciário como tentou envolver o Legislativo na confusão, apresentando o pedido de impeachment contra o ministro Alexandre de Moraes.

As cenas do 7 de setembro foram pré-insurrecionais. Depois de chamar Alexandre de Moraes de canalha e deixar claro que não seguiria decisões judiciais que viessem do ministro, depois de dar corda a manifestações de caminhoneiros que poderiam paralisar o país, o presidente forjou uma coalizão contra si. Se ainda assim o presidente optasse por escalar a crise, construiria o único cenário em que o impeachment seria possível.

O empresariado e o mundo financeiro, em sua maioria, deixaram claro que uma ruptura institucional era inaceitável. Seria impossível para o Congresso resistir à pressão por uma abertura de processo contra o presidente. O recuo, portanto, se impôs. Bolsonaro conseguiu fazê-lo sem se enfraquecer ainda mais. Foi uma retirada de Dunquerque. Em meio à derrota, teve o menor dano possível.

Para um operador da terceira via, como é o deputado Rodrigo Maia, hoje licenciado para passar uma temporada como secretário estadual de João Doria, Bolsonaro provou ser inteligente, um tema não exatamente incontroverso.

Para Maia, Bolsonaro foi arguto ao buscar o ex-presidente Michel Temer como articulador de uma saída para a crise que ele mesmo desencadeou. A inteligência de Bolsonaro, segundo Maia deu-se na maneira que o presidente escolheu para fazer seu recuo imprescindível. Ele ignorou os esforços conciliatórios do presidente da Câmara, Arthur Lira, do ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira e de integrantes do Supremo.

Se ele tivesse aceito essa mediação, cederia ainda mais terreno aos que hoje virtualmente o tutelam no Congresso. Uma prova de fraqueza desse tamanho tornaria a própria candidatura à reeleição em 2022 ameaçada. Não à toa surgiram especulações sobre quem poderia ser o herdeiro do espólio caso o presidente fosse constrangido a sair da disputa. Essas especulações — é bom frisar — não partem de Maia. Mas existiram.

O presidente buscou apoio em quem estava fora. “Ele foi inteligente quando escolheu Temer, alguém de fora, como interlocutor. Se ele usasse outros articuladores para recompor a relação com o Judiciário ficaria cada vez mais refém do Parlamento”, disse Maia.

Bolsonaro segue frágil em sua Presidência, mas demonstrou que sabe como se salvar até o término de seu mandato. Foi uma variável no cenário político que se fechou, de modo aparentemente definitivo, porque tudo leva a crer que não se pode contar com um eventual acesso de loucura ou de estupidez para interromper seu ciclo no poder.

 

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