Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Mais do que os mil dias de governo, teríamos
que estar discutindo as fontes do atraso que alimentam a visão
bolsonarista de mundo
Ao completar os mil dias de seu governo,
Bolsonaro mais reclamou do que comemorou. Para o presidente, se não fosse a
pandemia e seus efeitos sociais e econômicos, tudo teria dado certo. Com essa
postura, em vez de listar seus feitos e prometer um futuro ainda melhor, seu
discurso terminou com uma pérola do anticlímax ao comentar a inflação
galopante: “Nada está tão ruim que não possa piorar”. Culpar os outros e o
mundo, além de amedrontar o eleitorado com a possibilidade de alguém pior
ganhar em 2022, é uma forma de esconder as responsabilidades da Presidência
atual pelo buraco em que o país se meteu, o mais profundo desde o fim do regime
militar.
O Brasil regrediu em todos os sentidos nos últimos três anos. Primeiro, com pioras econômicas marcantes agora em termos de inflação, desemprego e crescimento. Segundo, com aumento da desigualdade e da pobreza, com o retorno de uma fome que não se via desde antes do Plano Real, há 27 anos. Terceiro, pela destruição das principais políticas públicas brasileiras, como a educação, saúde e meio ambiente, algo que facilitou a morte de quase 600 mil pessoas por covid-19, levou à perda da oportunidade educacional para milhões de crianças e jovens pobres, além de ter ampliado gigantescamente o desmatamento e outros desastres ambientais. Quarto, por meio do fortalecimento de um segmento populacional abertamente autoritário e sectário em termos políticos e culturais, gerando uma verdadeira “Idade Média” no debate, polarizado entre fiéis e infiéis. Por fim, relegando o país a uma situação de pária internacional, que terá impactos geopolíticos e nos investimentos produtivos, processo que atrasa a recuperação do desenvolvimento nacional.
Nos discursos comemorativos da semana, o
presidente demonstrou saber que o país não estará em 2022 do modo como
prometera na campanha de 2018. Seu biombo é culpar os outros e o destino. Não
há aqui como fugir dos conceitos de um clássico da ciência política, Nicolau
Maquiavel, por meio dos seus conceitos de “fortuna” e “virtù”, muito úteis para
compreender o desempenho dos governantes e suas responsabilidades frente aos
fatos. Já havia usado aqui na coluna esse conceito para analisar o primeiro ano
de mandato de Bolsonaro (“Factoides não vão tirar o Brasil da crise”, 13 de
março de 2020) e usá-lo novamente mostra como o presidente aprendeu pouco com
sua experiência governamental.
O conceito de “fortuna” diz respeito às
condições objetivas que os governantes enfrentam. As ações dos países, dos
aliados, dos adversários, dos atores sociais e econômicos, junto com fatos
inesperados, como a pandemia, tudo isso afeta a estratégia política de quem
está no poder. Há momentos de boa fortuna, com tudo dando certo ao mesmo tempo,
mas, como diria Maquiavel, o estadista somente é testado em situações adversas.
Aí entra em jogo suas capacidades subjetivas, sua competência em lidar com
momentos difíceis. Usando a linguagem do pensador florentino, trata-se da
habilidade política dos líderes, expressa na palavra “virtù”, que não diz
respeito às virtudes morais dos governantes e, sim, à sua eficiência em
resolver os problemas coletivos e ser bem-sucedido perante o povo e a história.
A “fortuna” sorriu largamente para
Bolsonaro durante a eleição de 2018. O eleitorado queria um candidato
antissistema e não havia outro que vestia tão bem o figurino. Evidente que ele
também teve “virtù” de realçar seu lado antipolítico, mas o problema é que ele
tem demorado para entender a diferença entre o período eleitoral e as tarefas
de um presidente - se é que capaz de entender.
O primeiro ano de mandato também trazia uma
“fortuna” bastante favorável, com o líder do maior partido de oposição na
cadeia, um Congresso mais liberal e reformista do que de costume, com um
presidente do STF francamente amigável ao Executivo, em suma, era um céu de
brigadeiro.
Bolsonaro perdeu uma enorme oportunidade no
primeiro ano de governo porque ampliou o uso do figurino antissistema, falando
mais com seus seguidores mais radicais do que com o eleitor mediano, brigando
com vários atores sociais e políticos e, enfim, iniciando um processo de
isolamento desnecessário. O crescimento do PIB de 2019, de 1,1%, foi menor do
que o de 2018 (1,3%), último ano do governo Temer, certamente um presidente com
menor legitimidade política. A popularidade presidencial também não cresceu, ao
contrário, reduziu-se ao longo do ano, com um aumento expressivo do ruim e
péssimo.
Sem dúvida alguma a pandemia piorou
drasticamente a “fortuna” não só de Bolsonaro, mas de todos os governantes do
mundo. É preciso lembrar isso, porque alguns deles, como as lideranças da
Alemanha, da Nova Zelândia, do Canadá, aumentaram sua avaliação positiva em
meio à maior crise social deste século. Exatamente nestes momentos é que
sabemos quem é estadista e quem é um líder sem “virtù”. Infelizmente, o
presidente brasileiro começou a trilhar em março de 2020 um caminho de erros
sucessivos cuja responsabilidade é só dele.
Se o Brasil hoje está completamente à
deriva, reduzindo drasticamente sua importância internacional, que cresceu nos
períodos FHC e Lula, a responsabilidade maior e inequívoca por isso é de
Bolsonaro. Falhou gravemente na pandemia, com uma política sanitária
equivocada, com demora na compra e uso de vacinas, além de ter favorecido o
negacionismo e grupos corruptos (econômica e moralmente) na atuação contra a
covd-19.
Além disso, não terá muitos resultados a
apresentar em 2022 em áreas estratégicas, como a economia, a educação e a
segurança pública - o aumento exponencial de latrocínios tem forte correlação
com a combinação de mais armas à disposição da sociedade com a desorganização
econômica do país.
Hoje, o presidente tem 22% de avaliações
como bom ou ótimo, enquanto 53% da população o considera ruim ou péssimo,
segundo o Datafolha. O cenário do ano que vem não apresenta sinais de que esse
quadro vá melhorar muito - na verdade, ele tem mais chances de piorar. Do ponto
de vista da eleição, neste momento Bolsonaro perderia de lavada para o
ex-presidente Lula no primeiro e no segundo turno, conforme todas as pesquisas
de opinião. Culpar apenas a má sorte por tal situação é fugir do fracasso
causado pelos grandes equívocos do modo bolsonarista de governar.
É incorreto dizer, entretanto, que
Bolsonaro não tenha demonstrado nenhuma “virtù” durante o mandato. Duas
habilidades políticas ele tem expressado de maneira clara. A primeira é a de
conseguir sobreviver politicamente em meio às denúncias contra seu governo e a
família presidencial. Por meio do acordo com o Centrão, que garantiu a eleição
de Arthur Lira para a presidência da Câmara dos Deputados, centenas de pedidos
de impeachment estão engavetados, especialmente porque foi criado um “orçamento
secreto” de R$ 30 bilhões, controlado pelos próprios deputados.
A escolha de um procurador-geral da
República fiel ao bolsonarismo é a outra peça que evita a condenação penal dos
bolsonaristas e do próprio presidente por crime de responsabilidade. Mas ainda
há os governadores, o Senado, a oposição de esquerda (por enquanto, com mais
força eleitoral), a mídia, atores sociais independentes e, sobretudo, o STF
para colocar medo e freios em Bolsonaro e seus aliados. É isso que, por ora,
tem acalmado os instintos mais autoritários do governo.
A segunda “virtù” do presidente está em sua
máquina de propaganda. Sua comunicação é muito bem trabalhada em redes sociais
e em grupos sociais específicos como evangélicos, caminhoneiros, policiais e
parte dos ruralistas. O governo Bolsonaro pode ser resumido como uma eterna
campanha eleitoral com pouco ou quase nada de políticas públicas.
Por isso que, mesmo com indicadores
econômicos e sociais péssimos, o bolsonarismo ainda acredita na reeleição
usando uma estratégia baseada na guerra cultural em nome de Deus e da família,
em muita propaganda, em emendas secretas para parlamentares e nas verbas
orçamentárias para jogar dinheiro de helicóptero aos pobres.
A recuperação do Brasil no pós-pandemia
dependerá de outros tipos de “virtù” que Bolsonaro até agora não demonstrou
ter. Ele não foi capaz de escolher os melhores quadros para comandar as
políticas públicas, não tem um diagnóstico objetivo do país e que dialogue com
as experiências internacionais bem-sucedidas, não consegue conversar e
construir consensos com os diversos setores da sociedade e, pior, está
alimentando o sistema político com o que há de pior nele.
Aqueles que ficaram entusiasmados com sua
agenda econômica inicial, e que hoje ficam abismados com a reforma tributária
ou a privatização da Eletrobras que foram entreguem ao país, não entenderam que
o bolsonarismo, nos seus melhores momentos, segue a máxima da política do
período imperial brasileiro: reformas liberais implantadas por escravocratas.
Mais do que os mil dias desse governo,
teríamos que estar discutindo agora as fontes do atraso que alimentam a visão
bolsonarista de mundo. E o último ano de mandato de Bolsonaro tende apenas a
aprofundar essa lógica perversa, que produzirá péssimos resultados econômicos,
sociais e políticos, mas que terá uma excelente propaganda em nome de Deus, da
família e da propriedade.
Fernando Abrucio, doutor em
ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas
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