Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Seu sistema era libertador, ao criar
condições de que o alfabetizado compreendesse o mundo em sua própria
perspectiva, e não como objeto
Neste centenário do educador Paulo Freire,
um marco de sua biografia é o acontecimento que ficou conhecido como “As 40
horas de Angicos”, no sertão do Rio Grande do Norte, em 1963. Ali começava uma
revolução educacional que se expandiria pelo país, pelo continente e pela
África: ensinar adultos iletrados a ler e a escrever em 40 horas. O ensino se
baseava no método criado por ele, que alterava profundamente a concepção de alfabetização
de adultos.
O modo tradicional de fazê-lo pressupunha
que todo analfabeto, independentemente da idade, era infantil. Usava-se com ele
ou cartilhas para crianças ou cartilhas infantilizadas, com frases de
referência, sem sentido, do tipo “Eva viu a uva”.
Em se tratando de adultos, o método
pressupunha que são eles donos de um saber provado na sua experiência de vida.
Portanto, a questão era tratar esse saber como um bem social.
A alfabetização começava com a pesquisa da língua e da linguagem das pessoas dos lugares em que ela seria realizada. Em vez de o aluno falar a língua do educador, o educador é que aprendia a língua de quem seria alfabetizado. Na prática, o professor é aluno de seus alunos. Nesse diálogo ele aprende para ensinar, para ser um agente de mediação da universalidade contida no vocabulário, na linguagem e no pensamento de que as palavras são instrumentos.
A fala popular é prática que já contém a
lógica que poderia dar sentido à palavra escrita e à palavra lida. Porque a
vida não é feita de certezas, de respostas prontas, mas de perguntas, de
desafios. É a vida que dá sentido às palavras.
Muitos estudiosos procuram conexões
teóricas entre o método de Paulo Freire e autores e correntes de pensamento que
o situem nesse ou naquele campo teórico. Na verdade a prática inspiradora do
método de Freire é a do método indutivo desdobrado para o método transdutivo.
Aquele que Henri Lefebvre definiu como o momento do método de observação da
realidade que desvenda o possível, o que pode ser, mas ainda não é porque está
aprisionado na realidade bloqueada. Alfabetizar é quebrar os grilhões desse
bloqueio.
Sua peculiaridade pedagógica é a de que o
aluno, ao perguntar ao professor, ensina-lhe a fazer as perguntas certas à
realidade cujas significações e possibilidades escapam dos procedimentos
dedutivos de enquadramento do real no já sabido.
Em 1963, no mundo inteiro, o saber dos
simples estava desafiando o conhecimento consolidado e livresco. Ao interrogar
quem os interrogava, os iletrados propunham novas perspectivas de compreensão e
interpretação da sociedade nos vários campos do conhecimento: na educação, na
religião, na sociologia, na antropologia, na psicologia. E nas outras ciências,
por meio das chamadas etnociências.
A singularidade do pensamento de Paulo
Freire foi a de traduzir-se num método de alfabetização que aculturava o
educador. Por isso, sua obra não se propõe de chofre. Mas aos poucos. Na
trajetória do exílio, ele foi tendo contato com outros campos de indagação que
iam na mesma direção.
Alguns dos seus resultados foram a
“Pedagogia do Oprimido” e o livro sobre extensão rural. Uma inversão no que a
extensão havia sido até então nas escolas de agronomia. O método de Paulo
Freire transforma-se, também, em método de explicação.
No encerramento das “40 horas de Angicos”,
a aula simbólica foi proferida pelo então presidente da República, João
Goulart. Duas filas atrás, o comandante do IV Exército, carrancudo, o general
Castelo Branco, observava. Poucas horas depois, num jantar no Recife, ele se
sentaria ao lado de Paulo Freire e lhe diria: “Eu desconfiava que o senhor era
subversivo. Agora tenho certeza”.
Muito pouco tempo depois, ele daria o golpe
de Estado, deporia Goulart e mandaria prender Paulo Freire. Era subversivo,
comentaria com alguém, porque era contra a hierarquia.
Na verdade, o método era um método
libertador, ao criar condições de que o alfabetizado pensasse com sua própria
cabeça, seu próprio discernimento. Compreendesse o mundo e a realidade em sua
própria perspectiva, como sujeito, e não como objeto, dominado e oprimido. O
método de Paulo Freire completava a obra da abolição da escravatura.
O analfabetismo foi e tem sido, no Brasil,
um instrumento de dominação e de poder, o poder do atraso que nos tiraniza até
hoje. A república anômala alimentou-se dele como meio de usurpação da liberdade
teórica concedida aos desvalidos.
Angicos tinha 700 eleitores. Alguns dias
após o término do curso das 40 horas, 300 dos seus alfabetizados entraram em
cartório com os pedidos de título de eleitor. O método de Paulo Freire ameaçava
o pilar da dominação oligárquica e latifundista. Poderia transformar um país de
servos num país de cidadãos.
*José de Souza Martins é
sociólogo. Professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da
Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall
(1993-94). Pesquisador emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras.
Entre outros livros, é autor de "Linchamentos - a justiça popular no
Brasil" (Contexto).
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