O Globo
Geisa Sfanini, 32 anos, moradora de Osasco (SP), teve 90% do corpo queimado porque, sem gás nem dinheiro, usou etanol para cozinhar. Ela morreu na última segunda-feira, deixou órfão um bebê de 8 meses. Duas vezes por semana, Denise da Silva, 51, viúva, cinco filhos, 12 netos, vai de São João de Meriti, na Baixada Fluminense, até a Glória, na Zona Sul carioca, para garimpar num caminhão fragmentos de carne bovina em pedaços de ossos e pelanca, mostraram Rafael Nascimento de Souza e Gabriel Sabóia em reportagem no Extra. Os restos descartados por supermercados tinham como destino fábricas de ração e sabão, até a fome levar a população ao desespero e o país ao patamar de miséria do século passado. Dezenove milhões de brasileiros, a maioria negros, estão à míngua, enquanto autoridades dormem, e o presidente da República, impopular como nunca, gasta tempo em campanha antecipada à reeleição.
Nada numa sociedade é mais degradante que a
fome. O Brasil soma dois Portugais de famintos, mas não tem política social de
enfrentamento à insegurança alimentar. Jair Bolsonaro foi a Nova York (EUA) e
Boa Vista (RR) dizer que acredita em Deus, respeita a Constituição, defende a
família tradicional (em evidente referência homofóbica) e é leal ao povo.
Mentiu à quarta potência. Qualquer líder que conjugue fé, respeito às leis,
defesa dos lares e lealdade à população agiria pela vida, não em prol da morte.
Em ano e meio de pandemia, o chefe do Executivo pregou desobediência ao
protocolo de proteção contra a Covid-19, recomendou medicamentos ineficazes,
não visitou um hospital, jamais se ocupou da urgência alimentar. Age
diuturnamente ora para proteger parentes e aliados investigados por um leque de
crimes, ora por mais uma temporada no Planalto.
Nesta semana, o coletivo Movimentos, de
jovens moradores de favelas, apresentou resultados de uma pesquisa sobre os
impactos da pandemia na Maré, no Complexo do Alemão e na Cidade de Deus. Metade
dos entrevistados precisou de ajuda para sobreviver à temporada; um terço
recolheu ou fez doações. O Estado despreza, a sociedade civil acolhe. A
Coalizão Negra por Direitos vai estender a campanha Tem Gente Com Fome, que em
seis meses arrecadou R$ 18,9 milhões, distribuiu cestas básicas a mais de 100
mil famílias, alimentou meio milhão de brasileiros. Nesta semana, por
iniciativa da subprocuradora aposentada Deborah Duprat, um Tribunal Popular da
Fome acusou e julgou o governo por violação ao direito humano à alimentação e
nutrição adequadas.
A pedido da Ação da Cidadania, a OAB
Nacional ajuizou no STF ação para obrigar o governo Bolsonaro a implementar
políticas públicas de combate à fome, em aliança com estados e municípios. A
ONG, fundada pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, morto em 1997, atua
desde os anos 1990 em campanhas contra a miséria. Em 2007, chegou a suspender
por uma década a doação de alimentos, em decorrência da política social, Bolsa
Família à frente, que tirou o Brasil do Mapa da Fome da ONU. A mobilização foi
retomada em 2017, com o agravamento da crise social após a recessão aguda do
período 2014-2016. No ano passado, com a pandemia, a demanda foi inédita.
— Desde março de 2020, arrecadamos R$ 150
milhões, suficientes para distribuir 30 mil toneladas de alimentos ou 150
milhões de pratos de comida a 12 milhões de brasileiros — informou Kiko Afonso,
diretor executivo da entidade.
Na ADPF 885, a OAB aponta violação de
direitos constitucionais pelo governo no enfrentamento à fome. Solicita ao STF
retomada e ampliação do auxílio emergencial de R$ 600, reativação do Conselho
Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e das demais instâncias
de participação social extintas, recomposição orçamentária, aplicação de R$ 1
bilhão no Programa de Aquisição de Alimentos, formação de estoques públicos de
alimentos da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) para aplacar escassez
de oferta e disparada dos preços. O relator, ministro Dias Toffoli, deu dez
dias para o governo se pronunciar.
Enquanto isso, o presidente age para
desmontar política social consolidada, e o ministro da Economia, Paulo Guedes,
avaliza gambiarras fiscais com objetivo eleitoral. A Medida Provisória do
Auxílio Brasil, que rebatizará o Bolsa Família, alerta o economista Francisco
Menezes, da ActionAid, não traz dotação orçamentária, número de beneficiários
nem valor do repasse, e insiste na inscrição por aplicativo de smartphone, em
detrimento do sistema de assistência social capaz de alcançar os mais
vulneráveis. A Petrobras, que lucrou R$ 42,9 bilhões no segundo trimestre e
pagará R$ 31,6 bilhões em dividendos a acionistas, União incluída, separou R$
300 milhões para subsidiar gás de cozinha para famílias pobres. De Band-Aid
para aplacar hemorragias, vive o governo brasileiro.
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