As motivações desse conjunto de situações lamentáveis se encontram numa miríade de circunstâncias. Mas as que supostamente envolvem posicionamentos públicos de dita conotação política são as que mobilizam a história como um terreno de disputa hodierna tal como tem se manifestado nesse 2021 e não só. Aqui os passados têm mudado a cada dia. Os passados não têm sido passíveis de reconstituição e tão só sujeitados as narrativas políticas ou não ausentes de compromissos com a busca das verdades.
A nota do BioParque do Rio diz que em face “da
ponderação levantada (...) retirou as estátuas do ambiente e revisará o
material temático na representação do continente Africano.” Ou seja: as
estátuas foram removidas para se evitar a proteção contra atos de vandalismo? Ou
o mercado preferiu evitar uma briga em que ficariam de um lado os supostos
cultores dos colonizadores e os manifestantes que ficaram do lado dos ditos colonizados.
O único problema disso tudo é o anacronismo infinito do hiperamericanismo que nos
cerca e alguns teimam em usar, abusar e lambuzar o espaço público.
A estátua de Pedro Álvares Cabral é uma
escultura assinada pelo mexicano José Maria Oscar Rodolpho Bernardelli y
Thierry (1852-1931), e foi inaugurada em 1900 para a efeméride do quarto
centenário da chegada do português. Sua localização, numa praça, um pouco
próxima e anterior aos resquícios do Hotel Glória (que nasceu no centenário do
nascimento do Brasil em 1922), foi no passado um ponto de referência para
milhões de moradores da Capital desde sua instalação. Pedro Álvares Cabral é
uma figura histórica que obviamente nunca desembarcou em solo carioca, mas que,
devido ao massacre em Calecute, pode ser considerado um precursor dos
conquistadores que atacaram e abusaram dos povos originários de toda a América.
Aliás, não seria necessário pensar em mudar este último substantivo geográfico,
já que se trata de um nome florentino que nos chegou por um germânico, e que ainda
gerou consequências terríveis de suas histórias baseadas em suas viagens ao “Novo
Mundo”?
Interessa reter que o destino das estátuas
do genovês Cristóvão Colombo (1451-1506) também não tem tido boa sorte pois
estão sendo removidas e/ou demolidas num conjunto de cidades. É o que aconteceu
em 2020, em Baltimore, Sacramento (que também retirou a do germano-suíço John
Sutter [1803-1880]) e São Francisco, nos Estados Unidos da América (EUA) e em Barranquilla,
na Colômbia e na cidade do México em 2021 e em várias outras cidades (Caracas
em 2009, Buenos Aires em 2013 e Los Angeles em 2018). Em Nova York, apesar
de algumas tentativas, era difícil removê-lo de Columbus Circle, pois seu
monumento é na verdade uma homenagem à presença italiana na cidade, o que acaba
por ser outro anacronismo. Lá eles o veem como um herói representativo das
glórias do renascimento da península itálica, como Maradona é para os argentinos.
As cidades de São Paulo e Rio de Janeiro (como
tantas outras aqui e em alhures) são grandes metrópoles, com múltiplas e
extensas avenidas e parques onde podem ser colocadas estátuas. Se quisermos erguer
um monumento à resistência das mulheres dos povos originários, africanos ou
afrodescendentes, ou simplesmente às suas existências, existem muitos lugares
para fazê-lo. O que se deve fazer é sempre a consulta democrática, em todas as
situações. Ruth Pinto de Souza (1921-2019) não mereceria uma? Por que não se
deve representar os povos de uma Savana Africana? O que se coloca no lugar? Obviamente,
nem Pedro Álvares Cabral, nem as populações africanas ou afrodescendentes, nem
os povos originários, nem a própria concepção de resistência têm algo a ver com
isso.
Vejamos alguns dos líderes que ordenaram a
remoção de estátuas no continente. Hugo Chávez (1954-2013) fez um julgamento
simbólico de Cristóvão Colombo em 2004 e, em 2009, ordenou a remoção da sua última
estátua em Caracas. Cristina Kirchner em 2013 fez algo similar em Buenos Aires,
embora não tenha conseguido mudar o nome do Teatro Colombo, o mais importante
da capital argentina. Os diversos parlamentares do Partido Democrata dos EUA em
cada uma das circunstâncias citadas estão enlaçados pelo voto com as Coalizões contra
os Símbolos Racistas.
Nada melhor do que remover uma estátua ou
colocar uma outra ou não o fazer pelo exercício democrático e sempre com debate
cívico educado e bem-informado. E tudo isso para não repetirmos o que vem se fazendo
e, se fez com o obelisco e estátua de 1960 do gaúcho Miguel Antônio Pastor (1930-1987)
para Isabel (1846-1921), também em Copacabana, com a sua demolição na década
seguinte sob o beneplácito da ditadura civil-militar. Enquanto isso não acontece,
tomemos cuidado quando formos brincar de pique-estátua!
*Professor do Instituto Devecchi e da Unyleya Educacional
30 de setembro de 2021
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