EDITORIAIS
Sem paliativo
Folha de S. Paulo
No caso Prevent Senior, é preciso apurar
responsabilidades e proteger clientes
Com mais de 500 mil clientes, dez hospitais
e 3.000 médicos, a Prevent Senior cresceu vendendo planos de saúde de baixo
custo a idosos e há poucos meses chegou a ser exibida como exemplo pela Agência
Nacional de Saúde Suplementar (ANS), num painel de boas práticas no
enfrentamento da pandemia.
A crise atravessada pela empresa desde que
se tornou alvo da Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado que investiga as
ações do governo na crise sanitária ameaça interromper essa trajetória.
Há uma série de graves acusações a serem esclarecidas —e, se confirmadas, cumpre apurar em que escala se davam tais episódios.
Segundo depoimentos de médicos e
familiares, pessoas infectadas pelo coronavírus foram tratadas com
hidroxicloroquina e outros medicamentos sem que o tratamento tivesse seu
consentimento.
Profissionais que prestam serviços à
operadora afirmaram ter sido pressionados a receitar os remédios duvidosos e
que foram orientados a apagar registros que associassem pacientes à Covid-19 em
casos de internação prolongada.
Relatos de médicos e pessoas que
sobreviveram à infecção sugerem que tratamentos paliativos, indicados para
situações irreversíveis, eram aplicados a doentes com chances de recuperação
para reduzir custos e desocupar leitos.
São consideráveis, ademais, os indícios que
associam as ações da Prevent Senior à estratégia negacionista adotada por Jair
Bolsonaro e seus curandeiros no início da pandemia, com o fim de sabotar as
iniciativas que buscavam conter a propagação do coronavírus.
O presidente fez estardalhaço com estudos
realizados por médicos da operadora que deram corda à propaganda da cloroquina.
Somente agora a empresa veio a público reconhecer que os resultados não tinham
validade científica.
Órgão responsável pela fiscalização dos
planos de saúde, a ANS autuou a empresa na terça-feira (27), após reunir
evidências que contrariam as primeiras explicações oferecidas pela operadora.
A agência instaurou dois procedimentos
administrativos para investigar a operadora. Se não forem corrigidas as falhas
detectadas, eles podem abrir caminho para uma intervenção, com a nomeação de um
diretor técnico para vigiar de perto seu gerenciamento.
São passos iniciais de um processo que
tende a ser arrastado, mas são um avanço se comparados com a leniência com que
a Prevent Senior foi tratada no passado.
O mais importante agora é proteger os
beneficiários dos planos, aperfeiçoar o modelo que permitiu sua expansão e
apurar responsabilidades —tarefa que caberá ao Ministério Público e aos
conselhos que regulam a profissão médica.
Biden e os imigrantes
Folha de S. Paulo
Presidente democrata emula políticas do
antecessor Trump na fronteira americana
Eleito com a promessa de dar um tratamento
mais humano à questão da imigração ilegal nos EUA, que sob Donald Trump esteve
marcada por uma política de tolerância zero, o presidente Joe Biden tem
mostrado até o momento mais
semelhanças do que diferenças com relação ao predecessor.
Que o digam os milhares de haitianos que
recentemente se amontoaram num acampamento improvisado sob a ponte que liga os
Estados Unidos ao município mexicano de Ciudad Acuña.
Um grupo que tentava chegar à cidade de Del
Rio, no Texas, terminou reprimido por agentes da Patrulha de Fronteira que,
montados sobre cavalos, utilizaram chicotes para impedir que famílias pisassem
em solo americano.
As cenas, que correram o planeta causando
previsível indignação, foram classificadas por Biden como “uma vergonha para a
nação”. Na tentativa de contornar a crise, o presidente democrata determinou o
fim do uso da cavalaria na região e a abertura de uma investigação sobre as
condutas dos agentes.
Tais condenações públicas, entretanto, não
se traduziram em maior comiseração pela situação dos haitianos. Nos últimos
dias, dezenas de voos repletos de migrantes partiram do Texas para o Haiti, o
mais pobre país das Américas e hoje mergulhado numa crise política e
humanitária.
Cerca de 3.500 pessoas já foram deportadas
por avião, segundo dados da ONU. Esse grupo inclui 30 crianças
brasileiras, que estavam acompanhadas dos pais haitianos, com quem
fizeram a jornada do Brasil até a fronteira americana.
Para promover a rápida deportação em massa,
Biden se serviu de um artifício legal estabelecido por Trump no início da
pandemia, que permite que os migrantes sejam rejeitados por risco sanitário sem
que nem lhes seja dada a chance de pedir asilo ou refúgio em território
americano.
A decisão mereceu críticas veementes de
membros do Partido Democrata e provocou a renúncia do enviado dos EUA para o
Haiti, que descreveu a conduta do governo como “desumana”.
Assim, Biden encontra-se enredado no mesmo
desafio que, em menor ou maior grau, acossou seus antecessores: equilibrar a
legítima proteção das fronteiras com as obrigações humanitárias para com quem
foge de turbulências políticas, sociais e econômicas. Até agora, o americano
não tem sido bem-sucedido nessa tarefa.
Devagar com o andor
O Estado de S. Paulo
Apesar da pressão da Câmara, o Senado anunciou que não votará o projeto do Código Eleitoral às pressas. Trata-se de uma decisão prudente e que evita retrocessos
Apesar da pressão da Câmara para que o
projeto de Código Eleitoral tivesse sua votação concluída ainda nesta semana –
caso fosse promulgada até o dia 2 de outubro, a nova lei já valeria nas
eleições de 2022 –, o Senado anunciou na terça-feira passada que não votará o
tema às pressas. Trata-se de decisão prudente que não apenas evita retrocessos
– o projeto aprovado pelos deputados prevê, por exemplo, inaceitável censura à
divulgação de pesquisa de intenção de voto –, mas reflete o melhor espírito
reformista.
Não tem sentido mudar a legislação para
piorá-la. Boas reformas exigem estudo, reflexão e debate. Ou seja, demandam
tempo. Com mais de 900 artigos, o texto do projeto de novo Código Eleitoral foi
aprovado pela Câmara sob um descabido regime de urgência, tendo em vista a
amplitude e a relevância dos assuntos tratados; por exemplo, altera a Lei da
Ficha Limpa e modifica as regras relativas ao uso do dinheiro público por
partidos.
Cabe agora ao Senado aplicar semelhante
prudência à tramitação de outros projetos legislativos; em especial, as
reformas administrativa e tributária. Não são assuntos que podem ser aprovados
sob o regime da afobação.
Adverte-se, em primeiro lugar, que as
atuais versões dessas duas reformas suscitam muitas dúvidas. Com tantas
incongruências, omissões e nebulosidades, os dois projetos têm sido
qualificados, com arrazoados argumentos, de verdadeiras antirreformas.
Em relação à reforma tributária aprovada na
Câmara, o nome é impróprio pela própria matéria, já que envolve apenas
alteração do Imposto de Renda (IR). Além disso, sua tramitação na Câmara foi
pouco transparente. No momento em que foi votado pelos parlamentares, o texto
final da reforma do IR era desconhecido. Não havia sido sequer divulgado aos
deputados. Assim, também eram desconhecidos os seus efeitos sobre as contas
públicas. Ou seja, parlamentares votaram um texto sem saber o que ele de fato
representava para o Estado e para os cidadãos.
Apenas depois de ter sido aprovado pela
Câmara, foi divulgado o teor final do projeto, permitindo, assim, estimar seus
efeitos sobre a arrecadação. Os cálculos indicam que, tal como foi aprovada
pelos deputados, a reforma do Imposto de Renda (IR) resultará em perda de
receita de R$ 21,8 bilhões para a União e de R$ 19,3 bilhões para Estados e
municípios.
Repetimos: ao votarem, os deputados
desconheciam esses dados básicos. Perante tal situação, o mínimo que o Senado
pode fazer é examinar com toda calma o projeto. Não cabe transigência com o
rolo compressor usado pela Câmara para tratar os assuntos.
No caso da reforma administrativa, deve-se
lembrar que se trata de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC). Toda e
qualquer mudança na Constituição requer especial cuidado – e não é outra a
razão pela qual se exige a aprovação, em dois turnos, por maioria de três
quintos de cada Casa legislativa. A tramitação de uma PEC deve propiciar debate
aprofundado e a devida maturação do tema.
Por isso, não se pode votar uma reforma
administrativa, que em tese viria melhorar o RH do Estado, sem que se saiba ao
certo se os seus dispositivos promovem ou não retrocesso, se agravam ou não os
privilégios de algumas castas do funcionalismo. Desde a apresentação da PEC
32/2020 pelo Executivo, eram patentes as suas limitações – por exemplo,
mantinha intacto o regime dos atuais funcionários –, mas a tramitação na Câmara
só agravou suas deficiências. Aprovado recentemente pela comissão da reforma
administrativa, o substitutivo do relator da PEC 32/2020 é bastante problemático.
O Congresso tem muito trabalho a fazer.
Como lembrado neste espaço (Reforma ruim e na hora errada, dia 4/9), “é hora de proteger o
projeto de Orçamento, de cuidar dos mais vulneráveis, de favorecer o consumo,
de eliminar entraves burocráticos, de facilitar a exportação, de tranquilizar
os mercados, de aumentar a confiança na solvência do Tesouro e de administrar a
crise hídrica”. Não é hora de produzir incertezas, menos ainda retrocessos, sob
o pretexto de aprovar “reformas” que são, na prática, remendos mal-ajambrados.
Informalidade e dinheiro curto
O Estado de S. Paulo
Trabalho informal puxa a criação de empregos num cenário de escassas oportunidades
O trabalho informal, o mais precário e com
menos benefícios, continua liderando o aumento da ocupação, embora o governo
comemore todo mês a expansão dos contratos com carteira assinada. O número de
informais – trabalhadores sem registro, por conta própria e também sem
remuneração – cresceu 5,6 milhões nos 12 meses até julho e chegou a 36,3
milhões de pessoas, grupo correspondente a 40,8% da população ocupada, segundo
o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No mesmo período, a
ocupação formal medida pelo Ministério do Trabalho chegou a 40,9 milhões de
trabalhadores, com acréscimo de 3,1 milhões de ocupados.
Sempre ressaltada pelo ministro da
Economia, Paulo Guedes, a criação de postos formais é um avanço importante, mas
insuficiente, ainda, para tornar menos sombrias as condições do trabalho. Alguma melhora aparece também nos números do IBGE, obtidos na Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua. O
desemprego diminuiu para 13,7% da força de trabalho no trimestre móvel
encerrado em julho. Houve recuo em relação à taxa do trimestre fevereiro-abril
(14,7%) e na comparação com o período até junho (14,1%). Mas o quadro continuou
muito feio, com 14,1 milhões de pessoas desocupadas e 31,7 milhões de
subutilizadas, 28% da população economicamente ativa.
Todos esses dados são melhores que os
obtidos nas apurações anteriores neste ano, mas todos confirmam uma recuperação
econômica insuficiente para tirar do sufoco as famílias mais atingidas pela
crise iniciada com a pandemia. Além disso, milhões de famílias já estavam em
situação muito complicada antes da pandemia, porque o Brasil nunca se
recuperou, de fato, do tombo causado pela recessão de 2015-2016.
Multidões em busca de trabalho têm sido um
componente constante da economia brasileira há muitos anos. Desde o fim da
recessão, em 2016, até o registro do primeiro caso de covid-19, o desemprego
nunca foi inferior a 11,2% e em vários trimestres superou 12% da força de
trabalho. Chegou a 12,2% no trimestre janeiro-março de 2020 e bateu em 14,2% na
travessia do ano passado para 2021. Subiu nos meses seguintes, até abril, e
diminuiu lentamente a partir daí.
Nessa trajetória, especialmente a partir do
último trimestre de 2020, a desocupação foi acompanhada de rápido
empobrecimento de milhões de pessoas e até de fome. Desnutrição sempre existiu,
mas em proporção muito limitada, em termos estatísticos, até recentemente. A
visibilidade da fome, especialmente no primeiro semestre, foi uma das grandes
novidades da paisagem social brasileira neste ano.
O sensível empobrecimento está associado a
um fenômeno mais amplo que o desemprego. Somando-se os desempregados, os
subutilizados por insuficiência de horas de trabalho, os desalentados e os
trabalhadores potenciais fora do mercado, chega-se a um contingente de 31,7
milhões, número 4,7% menor que o do trimestre até abril, mas ainda muito
grande. Os números seriam muito mais feios se menos pessoas buscassem ocupação
autônoma. Os trabalhadores por conta própria, 25,2 milhões, foram em julho um
recorde na série histórica, com aumento de 4,47% (1,1 milhão de pessoas) em
relação ao trimestre fevereiro-abril.
Um estrangeiro pouco informado poderia ver
nesse recorde um sinal entusiasmante, indicativo de um país com amplas
oportunidades e enorme número de pessoas com vocação empreendedora. Muitos
brasileiros talvez tenham, de fato, descoberto essa vocação, no último ano, mas
a explicação mais provável é bem menos animadora. Tanto empreendedorismo só
pode ser, na maior parte dos casos, um novo esforço para sobreviver num cenário
de pouco dinamismo e de escassas oportunidades.
No trimestre maio-julho, a massa real de
rendimentos habituais ficou estável, em R$ 218 bilhões, mas o rendimento médio
habitual, de R$ 2.508, foi 2,9% inferior ao de fevereiro-abril e 8,8% menor que
o de um ano antes. É preciso considerar também esse dado para avaliar as
condições de vida nesse período descrito como de grande dinamismo pelo ministro
da Economia.
Descaso
O Estado de S. Paulo
Com testagem precária contra a covid-19, Saúde ainda deixa apodrecer milhares de kits de teste
No dia 17 de setembro passado – 1 ano, 6
meses e quase 600 mil mortos depois do início da pandemia –, o ministro da
Saúde, Marcelo Queiroga, viajou até Natal (RN) para lançar o Plano Nacional de
Expansão da Testagem para Covid-19. “O vírus é o nosso inimigo”, disse o
ministro na cerimônia, “e nós estamos conseguindo vencê-lo testando a
população.” A fala de Queiroga seria risível, não representasse tão bem o
descaso e o escárnio que têm marcado a assim chamada “gestão” federal dessa
emergência sanitária que tanto tem custado ao País.
Para adicionar insulto à injúria, no exato
momento em que Queiroga anunciava seu extemporâneo plano de “expansão” do que,
na prática, jamais existiu (testagem em massa), milhares de kits de testes para
covid-19, dengue, zika e chikungunya, além de vacinas contra a gripe e a
meningite e insumos laboratoriais como soros e diluentes, apodreciam nos
galpões do Centro de Distribuição do Ministério da Saúde em Guarulhos (SP). A informação
foi revelada pelo Estado, que teve acesso a documentos internos da
Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS), vinculada à pasta.
O prejuízo de ordem material para os
contribuintes é de R$ 80,4 milhões. Contudo, no contexto de uma tragédia sem
precedentes, parece irrisório diante dos danos físicos e emocionais infligidos
à população por tamanha incúria.
A experiência mostrou cabalmente que os
países que melhor responderam à pandemia foram os que adotaram desde o início
planos de testagem amplos e organizados, incluindo o mapeamento de pessoas que
tiveram contato com indivíduos infectados, e apostaram na vacinação da
população. O Brasil não esteve nem remotamente próximo das boas práticas
adotadas por países como a Coreia do Sul e a Nova Zelândia. Ficou para trás até
de vizinhos na América do Sul.
Mesmo os governantes responsáveis, que
entenderam a dimensão da crise que teriam de administrar, praticamente
navegaram às cegas, sem ter um mapa de disseminação viral fidedigno para
nortear a adoção de políticas públicas de contenção ao vírus em decorrência da
falta de uma coordenação nacional de ações de combate à pandemia. Como se sabe,
vírus desconhecem fronteiras, sejam domésticas ou internacionais. A união de
esforços é mandatória para lidar com a ameaça sorrateira.
O perecimento de insumos tão necessários é
escandaloso porque se sabia da aproximação da data de vencimento e nada foi
feito com essa informação. Um ofício da coordenadora-geral substituta de
Logística de Insumos Estratégicos para a Saúde, Katiane Rodrigues Torres, ao
qual o Estado teve acesso, registra que “houve comunicação prévia da
proximidade de vencimento desses medicamentos” às autoridades competentes no
Ministério da Saúde. A despeito do alerta, a servidora apontou “ausência de
resposta das áreas responsáveis, em tempo hábil, para distribuição desses
Insumos Estratégicos para Saúde (IES)”. O ofício de Katiane Torres foi redigido
no dia 22 de setembro passado, cinco dias após Queiroga ter ido a Natal
anunciar a “expansão do plano de testes para covid-19” do Ministério da Saúde.
O presidente do Conselho Nacional de
Secretários de Saúde (Conass), Carlos Lula, afirmou que “perder doses de algo
que é plenamente controlável” é consequência da “falta de planejamento” do
Ministério da Saúde. Até pouco tempo atrás, a pasta era chefiada por um
intendente que era tido como um ás da gestão em logística. “Longe de ser um
episódio isolado”, disse Carlos Lula, o descaso “reflete toda a conduta pública
do governo federal há pelo menos dois anos”. Ou seja, mesmo antes de o mundo
tomar conhecimento da existência do novo coronavírus, o Ministério da Saúde já
faltava aos brasileiros ao negligenciar os cuidados com vacinas contra a gripe,
pentavalente, tetravalente e BCG, além de soros e diluentes.
Esse é o enorme custo de punir
profissionais sérios e entregar o Ministério da Saúde à gestão de neófitos,
quando não incompetentes e criminosos. O trabalho de recolher os cacos e
reconstruir não só a pasta, mas o País, será enorme.
BC mostra o tamanho do desafio inflacionário
Valor Econômico
A razão do aperto monetário é esfriar a
economia e o BC usará o aumento dos juros para uma tarefa incerta e difícil, a
de contrarrestar o avanço dos preços decorrentes de choques de oferta
A inflação só dará trégua e começará a se
aproximar da meta de 3,5% em 2022 no terceiro trimestre, ainda assim com uma
taxa de juros “significativamente contracionista”. Segundo o Relatório de
Inflação de setembro, há um conjunto de pressões generalizadas vindo de várias
direções — bens industriais, alimentos in natura, energia elétrica,
commodities, especialmente petróleo, gargalos na oferta — e outras por vir,
caso o setor de serviços volte à normalidade. No relatório, o BC disseca os
principais fatores de alta dos preços e avalia a ancoragem da política monetária
diante de sucessivas “surpresas inflacionárias”.
A razão do aperto monetário é esfriar a
economia e o BC usará o aumento dos juros para uma tarefa incerta e difícil, a
de contrarrestar o avanço dos preços decorrentes de choques de oferta. Reunidos
anteontem, poderosos banqueiros centrais, como os presidentes do Fed americano,
BC europeu, do Japão e da Inglaterra concordaram que a política monetária tem
pouca eficácia para controlar este tipo de choque. “Ela não pode aumentar a
produção de chips ou o número de caminhões disponíveis”, exemplificou Andrew
Bailey, presidente do Banco da Inglaterra.
O Brasil sofre uma série imponente de
choques de oferta que fizeram a inflação em doze meses encostar em 10%. Segundo
o BC, as commodities, inclusive agrícolas, subiram 31% até agosto, o petróleo
Brent, 43% (em reais), com aumentos de 31% da gasolina, 23,8% do gás de botijão
e 40,7% do etanol. A energia residencial subiu 10,61%. Os preços da energia no
país avançaram mais do que em todos os países emergentes relevantes.
Houve mudanças de nível de preços enormes,
incluindo na indústria de transformação, cujos bens produzidos em geral não
costumam figurar acima da evolução média dos preços. A escassez de insumos, com
os distúrbios das cadeias globais de produção — cuja demanda foi do quase zero
no início da pandemia ao quase infinito agora, e o aumento de custos se
espalharam por toda a produção industrial.
Segundo o relatório, mesmo excluindo itens
voláteis como alimentos, bebidas e combustíveis, ainda assim os bens
industriais apresentaram variação de 5,56%, “acima da usual”. A normalização do
fornecimento se processa aos poucos e só deverá ocorrer plenamente em 2022. A
“boa” notícia é que a indústria repassou os aumentos de energia e outros
insumos aos preços, de forma que eles estão alinhados aos custos — não há
inflação represada no setor, segundo o BC.
A soma das pressões inflacionárias levou a
média dos núcleos de inflação no trimestre encerrado em agosto (dessazonalizada
e anualizada) a 8,13%, ante 11,31% do IPCA. As principais contribuições vieram
dos preços administrados, alimentos, bens industriais e de aceleração inicial
dos preços dos serviços.
Nenhum dos choques de oferta era previsível
e, em um exercício contrafactual, o relatório mostrou o peso que tiveram na
mudança das expectativas inflacionárias. Colocando a evolução desses preços em
lugar das projeções do relatório de inflação de dezembro de 2020, houve aumento
de 2,3 pontos percentuais com a disparada dos combustíveis, 1 ponto com as
bandeiras de energia e 0,6 ponto com a evolução das commodities. São 3,9
pontos, ou, segundo o documento, 90% do aumento total das projeções (dados de
agosto).
Um dos capítulos mais curiosos do relatório
é o que diz respeito à ancoragem das expectativas, com base em questionários
pré-Copom. Nele, o BC compara não só o que economistas e consultorias esperavam
que seria a decisão do Copom a cada reunião — informação conhecida até certo
ponto — com suas respostas sobre o que acham que o Copom deveria fazer, o que
nunca se soube. Isso não só desvenda engenheiros de obras feitas como mostra
que o BC não estava isolado em um corner. “Em setembro de 2020 –— quando os
primeiros sinais de pressão sobre a inflação apareceram — 10% dos analistas
achavam adequado um estímulo monetário adicional. Entre outubro de 2020 e
janeiro de 2021 menos de 5% achavam adequado que se iniciasse o processo de
aperto da política monetária”, registra o relatório.
Diante da força inflacionária o BC levará os juros até aonde julgar conveniente. Reconhecendo o freio do aperto, o BC prevê crescimento de 2,1% em 2022, acima dos 1,5% (com viés de baixa) dos analistas privados. Em vez de preencher seu (baixo) potencial ao fim de 2022, como previa, a economia crescerá abaixo dele, retornando ao medíocre normal — com alguma sorte.
STF faz bem em conter desatino de juiz que
barrou passaporte sanitário
O Globo
Num total desatino, desembargador concedeu
habeas corpus coletivo, sob o argumento de que um decreto municipal não poderia
impedir a liberdade de locomoção da população
Quatro de cada dez brasileiros estão
totalmente vacinados contra a Covid-19, e sete de cada dez tomaram ao menos a
primeira dose. Mesmo com esse avanço, é preciso empenho e atenção para que o
país atinja a cobertura necessária para deter as novas variantes do vírus. É
por isso que causou consternação e revolta a decisão do desembargador Paulo
Rangel, do Tribunal de Justiça do Rio, que suspendeu o passaporte de vacinação
na capital, exigido para quem frequentar lugares com alta concentração de
público, como piscinas ou academias.
Num total desatino, Rangel concedeu habeas
corpus coletivo, sob o argumento de que um decreto municipal não poderia
impedir a liberdade de locomoção da população. O argumento é risível. O
magistrado parece imaginar que alguém que se nega a tomar vacina deve ter
direito a ameaçar a vida alheia transmitindo o vírus. A Prefeitura do Rio
recorreu, e felizmente o ministro Luiz Fux, presidente do Supremo Tribunal
Federal, cancelou a decisão numa liminar. Seria bom se o Supremo, ao julgar o
assunto em caráter definitivo, adotasse uma medida com efeito vinculante
autorizando os passaportes, ferramenta essencial para preservar a saúde pública
e permitir a retomada segura de atividades.
A Câmara dos Deputados também deveria fazer
sua parte, dando urgência ao projeto aprovado em junho no Senado criando o
Certificado Nacional de Imunização e Segurança Sanitária (CSS). Ideia do senador
Carlos Portinho (PL-RJ), a proposta prevê uma plataforma digital operada pelo
governo federal, em parceria com estados e municípios, para restringir, quando
necessário, o acesso de não vacinados a meios de transporte coletivos e locais
públicos e privados onde possam favorecer o contágio.
A experiência internacional mostra de forma
incontestável a eficácia do passaporte de imunidade quando bem implementado.
Depois de o presidente Emmanuel Macron adotá-lo na França em julho, recebeu uma
saraivada de críticas à direita e à esquerda. Nas horas seguintes ao anúncio, 1
milhão de franceses fizeram reservas de horários para ser vacinados. Em dois
meses, a parcela da população com ao menos uma dose pulou de 54% para 74%. No
Rio, o passaporte também acelerou o ritmo da vacinação.
Segundo levantamento do Datafolha, mais de
90% dos brasileiros estão na categoria dos que já se imunizaram ou pretendem
fazê-lo — percentual alto na comparação com outros países. Mesmo assim, não
pode haver espaço para complacência. Tirando da conta lunáticos do movimento
antivacinas, há um contingente que tomou a primeira dose e depois não voltou
para a segunda. Há outro grupo formado por quem ainda hesita em dar o braço
para a agulha. Em ambos os casos, os passaportes têm potencial de dar o
empurrão necessário na direção do posto de vacinação e do alcance do patamar de
imunidade coletiva que nos permitirá derrotar o vírus.
Nenhum comentário:
Postar um comentário