sexta-feira, 1 de outubro de 2021

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Sem paliativo

Folha de S. Paulo

No caso Prevent Senior, é preciso apurar responsabilidades e proteger clientes

Com mais de 500 mil clientes, dez hospitais e 3.000 médicos, a Prevent Senior cresceu vendendo planos de saúde de baixo custo a idosos e há poucos meses chegou a ser exibida como exemplo pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), num painel de boas práticas no enfrentamento da pandemia.

A crise atravessada pela empresa desde que se tornou alvo da Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado que investiga as ações do governo na crise sanitária ameaça interromper essa trajetória.

Há uma série de graves acusações a serem esclarecidas —e, se confirmadas, cumpre apurar em que escala se davam tais episódios.

Segundo depoimentos de médicos e familiares, pessoas infectadas pelo coronavírus foram tratadas com hidroxicloroquina e outros medicamentos sem que o tratamento tivesse seu consentimento.

Profissionais que prestam serviços à operadora afirmaram ter sido pressionados a receitar os remédios duvidosos e que foram orientados a apagar registros que associassem pacientes à Covid-19 em casos de internação prolongada.

Relatos de médicos e pessoas que sobreviveram à infecção sugerem que tratamentos paliativos, indicados para situações irreversíveis, eram aplicados a doentes com chances de recuperação para reduzir custos e desocupar leitos.

São consideráveis, ademais, os indícios que associam as ações da Prevent Senior à estratégia negacionista adotada por Jair Bolsonaro e seus curandeiros no início da pandemia, com o fim de sabotar as iniciativas que buscavam conter a propagação do coronavírus.

O presidente fez estardalhaço com estudos realizados por médicos da operadora que deram corda à propaganda da cloroquina. Somente agora a empresa veio a público reconhecer que os resultados não tinham validade científica.

Órgão responsável pela fiscalização dos planos de saúde, a ANS autuou a empresa na terça-feira (27), após reunir evidências que contrariam as primeiras explicações oferecidas pela operadora.

A agência instaurou dois procedimentos administrativos para investigar a operadora. Se não forem corrigidas as falhas detectadas, eles podem abrir caminho para uma intervenção, com a nomeação de um diretor técnico para vigiar de perto seu gerenciamento.

São passos iniciais de um processo que tende a ser arrastado, mas são um avanço se comparados com a leniência com que a Prevent Senior foi tratada no passado.

O mais importante agora é proteger os beneficiários dos planos, aperfeiçoar o modelo que permitiu sua expansão e apurar responsabilidades —tarefa que caberá ao Ministério Público e aos conselhos que regulam a profissão médica.

Biden e os imigrantes

Folha de S. Paulo

Presidente democrata emula políticas do antecessor Trump na fronteira americana

Eleito com a promessa de dar um tratamento mais humano à questão da imigração ilegal nos EUA, que sob Donald Trump esteve marcada por uma política de tolerância zero, o presidente Joe Biden tem mostrado até o momento mais semelhanças do que diferenças com relação ao predecessor.

Que o digam os milhares de haitianos que recentemente se amontoaram num acampamento improvisado sob a ponte que liga os Estados Unidos ao município mexicano de Ciudad Acuña.

Um grupo que tentava chegar à cidade de Del Rio, no Texas, terminou reprimido por agentes da Patrulha de Fronteira que, montados sobre cavalos, utilizaram chicotes para impedir que famílias pisassem em solo americano.

As cenas, que correram o planeta causando previsível indignação, foram classificadas por Biden como “uma vergonha para a nação”. Na tentativa de contornar a crise, o presidente democrata determinou o fim do uso da cavalaria na região e a abertura de uma investigação sobre as condutas dos agentes.

Tais condenações públicas, entretanto, não se traduziram em maior comiseração pela situação dos haitianos. Nos últimos dias, dezenas de voos repletos de migrantes partiram do Texas para o Haiti, o mais pobre país das Américas e hoje mergulhado numa crise política e humanitária.

Cerca de 3.500 pessoas já foram deportadas por avião, segundo dados da ONU. Esse grupo inclui 30 crianças brasileiras, que estavam acompanhadas dos pais haitianos, com quem fizeram a jornada do Brasil até a fronteira americana.

Para promover a rápida deportação em massa, Biden se serviu de um artifício legal estabelecido por Trump no início da pandemia, que permite que os migrantes sejam rejeitados por risco sanitário sem que nem lhes seja dada a chance de pedir asilo ou refúgio em território americano.

A decisão mereceu críticas veementes de membros do Partido Democrata e provocou a renúncia do enviado dos EUA para o Haiti, que descreveu a conduta do governo como “desumana”.

Assim, Biden encontra-se enredado no mesmo desafio que, em menor ou maior grau, acossou seus antecessores: equilibrar a legítima proteção das fronteiras com as obrigações humanitárias para com quem foge de turbulências políticas, sociais e econômicas. Até agora, o americano não tem sido bem-sucedido nessa tarefa.

Devagar com o andor

O Estado de S. Paulo

Apesar da pressão da Câmara, o Senado anunciou que não votará o projeto do Código Eleitoral às pressas. Trata-se de uma decisão prudente e que evita retrocessos

Apesar da pressão da Câmara para que o projeto de Código Eleitoral tivesse sua votação concluída ainda nesta semana – caso fosse promulgada até o dia 2 de outubro, a nova lei já valeria nas eleições de 2022 –, o Senado anunciou na terça-feira passada que não votará o tema às pressas. Trata-se de decisão prudente que não apenas evita retrocessos – o projeto aprovado pelos deputados prevê, por exemplo, inaceitável censura à divulgação de pesquisa de intenção de voto –, mas reflete o melhor espírito reformista.

Não tem sentido mudar a legislação para piorá-la. Boas reformas exigem estudo, reflexão e debate. Ou seja, demandam tempo. Com mais de 900 artigos, o texto do projeto de novo Código Eleitoral foi aprovado pela Câmara sob um descabido regime de urgência, tendo em vista a amplitude e a relevância dos assuntos tratados; por exemplo, altera a Lei da Ficha Limpa e modifica as regras relativas ao uso do dinheiro público por partidos.

Cabe agora ao Senado aplicar semelhante prudência à tramitação de outros projetos legislativos; em especial, as reformas administrativa e tributária. Não são assuntos que podem ser aprovados sob o regime da afobação.

Adverte-se, em primeiro lugar, que as atuais versões dessas duas reformas suscitam muitas dúvidas. Com tantas incongruências, omissões e nebulosidades, os dois projetos têm sido qualificados, com arrazoados argumentos, de verdadeiras antirreformas.

Em relação à reforma tributária aprovada na Câmara, o nome é impróprio pela própria matéria, já que envolve apenas alteração do Imposto de Renda (IR). Além disso, sua tramitação na Câmara foi pouco transparente. No momento em que foi votado pelos parlamentares, o texto final da reforma do IR era desconhecido. Não havia sido sequer divulgado aos deputados. Assim, também eram desconhecidos os seus efeitos sobre as contas públicas. Ou seja, parlamentares votaram um texto sem saber o que ele de fato representava para o Estado e para os cidadãos.

Apenas depois de ter sido aprovado pela Câmara, foi divulgado o teor final do projeto, permitindo, assim, estimar seus efeitos sobre a arrecadação. Os cálculos indicam que, tal como foi aprovada pelos deputados, a reforma do Imposto de Renda (IR) resultará em perda de receita de R$ 21,8 bilhões para a União e de R$ 19,3 bilhões para Estados e municípios.

Repetimos: ao votarem, os deputados desconheciam esses dados básicos. Perante tal situação, o mínimo que o Senado pode fazer é examinar com toda calma o projeto. Não cabe transigência com o rolo compressor usado pela Câmara para tratar os assuntos.

No caso da reforma administrativa, deve-se lembrar que se trata de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC). Toda e qualquer mudança na Constituição requer especial cuidado – e não é outra a razão pela qual se exige a aprovação, em dois turnos, por maioria de três quintos de cada Casa legislativa. A tramitação de uma PEC deve propiciar debate aprofundado e a devida maturação do tema.

Por isso, não se pode votar uma reforma administrativa, que em tese viria melhorar o RH do Estado, sem que se saiba ao certo se os seus dispositivos promovem ou não retrocesso, se agravam ou não os privilégios de algumas castas do funcionalismo. Desde a apresentação da PEC 32/2020 pelo Executivo, eram patentes as suas limitações – por exemplo, mantinha intacto o regime dos atuais funcionários –, mas a tramitação na Câmara só agravou suas deficiências. Aprovado recentemente pela comissão da reforma administrativa, o substitutivo do relator da PEC 32/2020 é bastante problemático.

O Congresso tem muito trabalho a fazer. Como lembrado neste espaço (Reforma ruim e na hora errada, dia 4/9), “é hora de proteger o projeto de Orçamento, de cuidar dos mais vulneráveis, de favorecer o consumo, de eliminar entraves burocráticos, de facilitar a exportação, de tranquilizar os mercados, de aumentar a confiança na solvência do Tesouro e de administrar a crise hídrica”. Não é hora de produzir incertezas, menos ainda retrocessos, sob o pretexto de aprovar “reformas” que são, na prática, remendos mal-ajambrados.

Informalidade e dinheiro curto

O Estado de S. Paulo

Trabalho informal puxa a criação de empregos num cenário de escassas oportunidades

O trabalho informal, o mais precário e com menos benefícios, continua liderando o aumento da ocupação, embora o governo comemore todo mês a expansão dos contratos com carteira assinada. O número de informais – trabalhadores sem registro, por conta própria e também sem remuneração – cresceu 5,6 milhões nos 12 meses até julho e chegou a 36,3 milhões de pessoas, grupo correspondente a 40,8% da população ocupada, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No mesmo período, a ocupação formal medida pelo Ministério do Trabalho chegou a 40,9 milhões de trabalhadores, com acréscimo de 3,1 milhões de ocupados.

Sempre ressaltada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, a criação de postos formais é um avanço importante, mas insuficiente, ainda, para tornar menos sombrias as condições do trabalho. Alguma melhora aparece também nos números do IBGE, obtidos na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua. O desemprego diminuiu para 13,7% da força de trabalho no trimestre móvel encerrado em julho. Houve recuo em relação à taxa do trimestre fevereiro-abril (14,7%) e na comparação com o período até junho (14,1%). Mas o quadro continuou muito feio, com 14,1 milhões de pessoas desocupadas e 31,7 milhões de subutilizadas, 28% da população economicamente ativa.

Todos esses dados são melhores que os obtidos nas apurações anteriores neste ano, mas todos confirmam uma recuperação econômica insuficiente para tirar do sufoco as famílias mais atingidas pela crise iniciada com a pandemia. Além disso, milhões de famílias já estavam em situação muito complicada antes da pandemia, porque o Brasil nunca se recuperou, de fato, do tombo causado pela recessão de 2015-2016.

Multidões em busca de trabalho têm sido um componente constante da economia brasileira há muitos anos. Desde o fim da recessão, em 2016, até o registro do primeiro caso de covid-19, o desemprego nunca foi inferior a 11,2% e em vários trimestres superou 12% da força de trabalho. Chegou a 12,2% no trimestre janeiro-março de 2020 e bateu em 14,2% na travessia do ano passado para 2021. Subiu nos meses seguintes, até abril, e diminuiu lentamente a partir daí.

Nessa trajetória, especialmente a partir do último trimestre de 2020, a desocupação foi acompanhada de rápido empobrecimento de milhões de pessoas e até de fome. Desnutrição sempre existiu, mas em proporção muito limitada, em termos estatísticos, até recentemente. A visibilidade da fome, especialmente no primeiro semestre, foi uma das grandes novidades da paisagem social brasileira neste ano.

O sensível empobrecimento está associado a um fenômeno mais amplo que o desemprego. Somando-se os desempregados, os subutilizados por insuficiência de horas de trabalho, os desalentados e os trabalhadores potenciais fora do mercado, chega-se a um contingente de 31,7 milhões, número 4,7% menor que o do trimestre até abril, mas ainda muito grande. Os números seriam muito mais feios se menos pessoas buscassem ocupação autônoma. Os trabalhadores por conta própria, 25,2 milhões, foram em julho um recorde na série histórica, com aumento de 4,47% (1,1 milhão de pessoas) em relação ao trimestre fevereiro-abril.

Um estrangeiro pouco informado poderia ver nesse recorde um sinal entusiasmante, indicativo de um país com amplas oportunidades e enorme número de pessoas com vocação empreendedora. Muitos brasileiros talvez tenham, de fato, descoberto essa vocação, no último ano, mas a explicação mais provável é bem menos animadora. Tanto empreendedorismo só pode ser, na maior parte dos casos, um novo esforço para sobreviver num cenário de pouco dinamismo e de escassas oportunidades.

No trimestre maio-julho, a massa real de rendimentos habituais ficou estável, em R$ 218 bilhões, mas o rendimento médio habitual, de R$ 2.508, foi 2,9% inferior ao de fevereiro-abril e 8,8% menor que o de um ano antes. É preciso considerar também esse dado para avaliar as condições de vida nesse período descrito como de grande dinamismo pelo ministro da Economia.

Descaso

O Estado de S. Paulo

Com testagem precária contra a covid-19, Saúde ainda deixa apodrecer milhares de kits de teste

No dia 17 de setembro passado – 1 ano, 6 meses e quase 600 mil mortos depois do início da pandemia –, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, viajou até Natal (RN) para lançar o Plano Nacional de Expansão da Testagem para Covid-19. “O vírus é o nosso inimigo”, disse o ministro na cerimônia, “e nós estamos conseguindo vencê-lo testando a população.” A fala de Queiroga seria risível, não representasse tão bem o descaso e o escárnio que têm marcado a assim chamada “gestão” federal dessa emergência sanitária que tanto tem custado ao País.

Para adicionar insulto à injúria, no exato momento em que Queiroga anunciava seu extemporâneo plano de “expansão” do que, na prática, jamais existiu (testagem em massa), milhares de kits de testes para covid-19, dengue, zika e chikungunya, além de vacinas contra a gripe e a meningite e insumos laboratoriais como soros e diluentes, apodreciam nos galpões do Centro de Distribuição do Ministério da Saúde em Guarulhos (SP). A informação foi revelada pelo Estado, que teve acesso a documentos internos da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS), vinculada à pasta.

O prejuízo de ordem material para os contribuintes é de R$ 80,4 milhões. Contudo, no contexto de uma tragédia sem precedentes, parece irrisório diante dos danos físicos e emocionais infligidos à população por tamanha incúria.

A experiência mostrou cabalmente que os países que melhor responderam à pandemia foram os que adotaram desde o início planos de testagem amplos e organizados, incluindo o mapeamento de pessoas que tiveram contato com indivíduos infectados, e apostaram na vacinação da população. O Brasil não esteve nem remotamente próximo das boas práticas adotadas por países como a Coreia do Sul e a Nova Zelândia. Ficou para trás até de vizinhos na América do Sul.

Mesmo os governantes responsáveis, que entenderam a dimensão da crise que teriam de administrar, praticamente navegaram às cegas, sem ter um mapa de disseminação viral fidedigno para nortear a adoção de políticas públicas de contenção ao vírus em decorrência da falta de uma coordenação nacional de ações de combate à pandemia. Como se sabe, vírus desconhecem fronteiras, sejam domésticas ou internacionais. A união de esforços é mandatória para lidar com a ameaça sorrateira.

O perecimento de insumos tão necessários é escandaloso porque se sabia da aproximação da data de vencimento e nada foi feito com essa informação. Um ofício da coordenadora-geral substituta de Logística de Insumos Estratégicos para a Saúde, Katiane Rodrigues Torres, ao qual o Estado teve acesso, registra que “houve comunicação prévia da proximidade de vencimento desses medicamentos” às autoridades competentes no Ministério da Saúde. A despeito do alerta, a servidora apontou “ausência de resposta das áreas responsáveis, em tempo hábil, para distribuição desses Insumos Estratégicos para Saúde (IES)”. O ofício de Katiane Torres foi redigido no dia 22 de setembro passado, cinco dias após Queiroga ter ido a Natal anunciar a “expansão do plano de testes para covid-19” do Ministério da Saúde.

O presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), Carlos Lula, afirmou que “perder doses de algo que é plenamente controlável” é consequência da “falta de planejamento” do Ministério da Saúde. Até pouco tempo atrás, a pasta era chefiada por um intendente que era tido como um ás da gestão em logística. “Longe de ser um episódio isolado”, disse Carlos Lula, o descaso “reflete toda a conduta pública do governo federal há pelo menos dois anos”. Ou seja, mesmo antes de o mundo tomar conhecimento da existência do novo coronavírus, o Ministério da Saúde já faltava aos brasileiros ao negligenciar os cuidados com vacinas contra a gripe, pentavalente, tetravalente e BCG, além de soros e diluentes.

Esse é o enorme custo de punir profissionais sérios e entregar o Ministério da Saúde à gestão de neófitos, quando não incompetentes e criminosos. O trabalho de recolher os cacos e reconstruir não só a pasta, mas o País, será enorme.

BC mostra o tamanho do desafio inflacionário

Valor Econômico

A razão do aperto monetário é esfriar a economia e o BC usará o aumento dos juros para uma tarefa incerta e difícil, a de contrarrestar o avanço dos preços decorrentes de choques de oferta

A inflação só dará trégua e começará a se aproximar da meta de 3,5% em 2022 no terceiro trimestre, ainda assim com uma taxa de juros “significativamente contracionista”. Segundo o Relatório de Inflação de setembro, há um conjunto de pressões generalizadas vindo de várias direções — bens industriais, alimentos in natura, energia elétrica, commodities, especialmente petróleo, gargalos na oferta — e outras por vir, caso o setor de serviços volte à normalidade. No relatório, o BC disseca os principais fatores de alta dos preços e avalia a ancoragem da política monetária diante de sucessivas “surpresas inflacionárias”.

A razão do aperto monetário é esfriar a economia e o BC usará o aumento dos juros para uma tarefa incerta e difícil, a de contrarrestar o avanço dos preços decorrentes de choques de oferta. Reunidos anteontem, poderosos banqueiros centrais, como os presidentes do Fed americano, BC europeu, do Japão e da Inglaterra concordaram que a política monetária tem pouca eficácia para controlar este tipo de choque. “Ela não pode aumentar a produção de chips ou o número de caminhões disponíveis”, exemplificou Andrew Bailey, presidente do Banco da Inglaterra.

O Brasil sofre uma série imponente de choques de oferta que fizeram a inflação em doze meses encostar em 10%. Segundo o BC, as commodities, inclusive agrícolas, subiram 31% até agosto, o petróleo Brent, 43% (em reais), com aumentos de 31% da gasolina, 23,8% do gás de botijão e 40,7% do etanol. A energia residencial subiu 10,61%. Os preços da energia no país avançaram mais do que em todos os países emergentes relevantes.

Houve mudanças de nível de preços enormes, incluindo na indústria de transformação, cujos bens produzidos em geral não costumam figurar acima da evolução média dos preços. A escassez de insumos, com os distúrbios das cadeias globais de produção — cuja demanda foi do quase zero no início da pandemia ao quase infinito agora, e o aumento de custos se espalharam por toda a produção industrial.

Segundo o relatório, mesmo excluindo itens voláteis como alimentos, bebidas e combustíveis, ainda assim os bens industriais apresentaram variação de 5,56%, “acima da usual”. A normalização do fornecimento se processa aos poucos e só deverá ocorrer plenamente em 2022. A “boa” notícia é que a indústria repassou os aumentos de energia e outros insumos aos preços, de forma que eles estão alinhados aos custos — não há inflação represada no setor, segundo o BC.

A soma das pressões inflacionárias levou a média dos núcleos de inflação no trimestre encerrado em agosto (dessazonalizada e anualizada) a 8,13%, ante 11,31% do IPCA. As principais contribuições vieram dos preços administrados, alimentos, bens industriais e de aceleração inicial dos preços dos serviços.

Nenhum dos choques de oferta era previsível e, em um exercício contrafactual, o relatório mostrou o peso que tiveram na mudança das expectativas inflacionárias. Colocando a evolução desses preços em lugar das projeções do relatório de inflação de dezembro de 2020, houve aumento de 2,3 pontos percentuais com a disparada dos combustíveis, 1 ponto com as bandeiras de energia e 0,6 ponto com a evolução das commodities. São 3,9 pontos, ou, segundo o documento, 90% do aumento total das projeções (dados de agosto).

Um dos capítulos mais curiosos do relatório é o que diz respeito à ancoragem das expectativas, com base em questionários pré-Copom. Nele, o BC compara não só o que economistas e consultorias esperavam que seria a decisão do Copom a cada reunião — informação conhecida até certo ponto — com suas respostas sobre o que acham que o Copom deveria fazer, o que nunca se soube. Isso não só desvenda engenheiros de obras feitas como mostra que o BC não estava isolado em um corner. “Em setembro de 2020 –— quando os primeiros sinais de pressão sobre a inflação apareceram — 10% dos analistas achavam adequado um estímulo monetário adicional. Entre outubro de 2020 e janeiro de 2021 menos de 5% achavam adequado que se iniciasse o processo de aperto da política monetária”, registra o relatório.

Diante da força inflacionária o BC levará os juros até aonde julgar conveniente. Reconhecendo o freio do aperto, o BC prevê crescimento de 2,1% em 2022, acima dos 1,5% (com viés de baixa) dos analistas privados. Em vez de preencher seu (baixo) potencial ao fim de 2022, como previa, a economia crescerá abaixo dele, retornando ao medíocre normal — com alguma sorte.

STF faz bem em conter desatino de juiz que barrou passaporte sanitário

O Globo

Num total desatino, desembargador concedeu habeas corpus coletivo, sob o argumento de que um decreto municipal não poderia impedir a liberdade de locomoção da população

Quatro de cada dez brasileiros estão totalmente vacinados contra a Covid-19, e sete de cada dez tomaram ao menos a primeira dose. Mesmo com esse avanço, é preciso empenho e atenção para que o país atinja a cobertura necessária para deter as novas variantes do vírus. É por isso que causou consternação e revolta a decisão do desembargador Paulo Rangel, do Tribunal de Justiça do Rio, que suspendeu o passaporte de vacinação na capital, exigido para quem frequentar lugares com alta concentração de público, como piscinas ou academias.

Num total desatino, Rangel concedeu habeas corpus coletivo, sob o argumento de que um decreto municipal não poderia impedir a liberdade de locomoção da população. O argumento é risível. O magistrado parece imaginar que alguém que se nega a tomar vacina deve ter direito a ameaçar a vida alheia transmitindo o vírus. A Prefeitura do Rio recorreu, e felizmente o ministro Luiz Fux, presidente do Supremo Tribunal Federal, cancelou a decisão numa liminar. Seria bom se o Supremo, ao julgar o assunto em caráter definitivo, adotasse uma medida com efeito vinculante autorizando os passaportes, ferramenta essencial para preservar a saúde pública e permitir a retomada segura de atividades.

A Câmara dos Deputados também deveria fazer sua parte, dando urgência ao projeto aprovado em junho no Senado criando o Certificado Nacional de Imunização e Segurança Sanitária (CSS). Ideia do senador Carlos Portinho (PL-RJ), a proposta prevê uma plataforma digital operada pelo governo federal, em parceria com estados e municípios, para restringir, quando necessário, o acesso de não vacinados a meios de transporte coletivos e locais públicos e privados onde possam favorecer o contágio.

A experiência internacional mostra de forma incontestável a eficácia do passaporte de imunidade quando bem implementado. Depois de o presidente Emmanuel Macron adotá-lo na França em julho, recebeu uma saraivada de críticas à direita e à esquerda. Nas horas seguintes ao anúncio, 1 milhão de franceses fizeram reservas de horários para ser vacinados. Em dois meses, a parcela da população com ao menos uma dose pulou de 54% para 74%. No Rio, o passaporte também acelerou o ritmo da vacinação.

Segundo levantamento do Datafolha, mais de 90% dos brasileiros estão na categoria dos que já se imunizaram ou pretendem fazê-lo — percentual alto na comparação com outros países. Mesmo assim, não pode haver espaço para complacência. Tirando da conta lunáticos do movimento antivacinas, há um contingente que tomou a primeira dose e depois não voltou para a segunda. Há outro grupo formado por quem ainda hesita em dar o braço para a agulha. Em ambos os casos, os passaportes têm potencial de dar o empurrão necessário na direção do posto de vacinação e do alcance do patamar de imunidade coletiva que nos permitirá derrotar o vírus.

 

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