domingo, 3 de outubro de 2021

Entrevista | A grande crise do Ocidente

Sociedades desorientadas e altamente polarizadas podem alimentar a ‘tentação chinesa’

Por Assis Moreira / Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Ex-secretário-geral adjunto da Organização das Nações Unidas (ONU) e chefe das operações de manutenção da paz entre 2000 e 2008, o diplomata francês Jean-Marie Guéhenno publica um novo livro, intitulado “Le premier XXIe siècle, de la globalisation à l’émiettement du monde” (O primeiro século XXI, da globalização à pulverização do mundo, Flammarion), no qual avalia que o Ocidente democrático atravessa sua crise mais grave desde o fim da Guerra Fria.

Especialista de relações internacionais e questões de defesa e hoje professor na Universidade Columbia, de Nova York, Guéhenno observa que o período atual tem, em todo o caso, pouco a ver com a precedente Guerra Fria, e o sucesso chinês coloca o Ocidente capitalista numa situação bem diferente em comparação à confrontação com a União Soviética.

Para ele, o medo cresce em sociedades desorientadas e extremamente polarizadas, e isso pode alimentar a chamada “tentação chinesa”, a atração pelo modelo chinês. Guéhenno avalia que a ditadura chinesa parece tentar indivíduos em vários países, com seu sucesso material que fascina e sua capacidade de manter uma certa harmonia da sociedade. Usando o poder das novas tecnologias, a China procura passar da ditadura repressiva - descrita por George Orwell, baseada no terror - à ditadura preventiva descrita por Aldous Huxley, baseada num controle dos espíritos em que a pessoa não se sente em prisão.

Mas, para o autor, a verdadeira ameaça está no interior das sociedades ocidentais, na sua fragmentação crescente, que não se sabe ainda como superar.

Guéhenno aborda o que chama de ilusão da nova ordem mundial, o indivíduo perante a sociedade, a crise da política tradicional, a nova política e novos nacionalismos, o poder das grandes companhias digitais, o futuro da guerra em sociedades pulverizadas.

No capítulo sobre a nova política, Guéhenno destaca como certos líderes não procuram mais o terreno comum na política, para superar diferenças e agregar pelo compromisso eleitores diversos. Ao contrário, procuram aprofundar as clivagens. Pela brutalidade da linguagem e dos atos, o partido acentua o que o diferencia de seu adversário. Não ofender é visto como começar a mentir. Não tenta sequer se fazer “respeitável”, seguindo a lógica de partidos fascistas.

Guéhenno nota que nesse cenário a diferença entre o fato e a ficção, entre o verdadeiro e o falso, não existe mais. Destaca o cinismo de líderes que fazem as pessoas acreditarem nas declarações mais absurdas um dia, certos de que podem dizer todo o contrário no dia seguinte como uma espécie de habilidade tática superior na política.

Assim, o espaço compartilhado da razão, que desde a antiguidade foi a base do debate democrático, se fragmenta numa multitude de ilhas de certezas incompatíveis e irreconciliáveis, observa Guéhenno.

Trechos da entrevista:

Valor: O sr. diz que o Ocidente democrático passa pela mais grave crise desde o fim da Guerra Fria. O que deu errado?

Jean-Marie Guéhenno: Durante toda a Guerra Fria não pensamos sobre quem éramos, porque tínhamos como adversário o bloco comunista, a União Soviética, e víamos que nossa sociedade, com todas suas deficiências e fraquezas, era ainda assim bem superior à deles. Em 1989 (queda do Muro de Berlim), ficamos sem inimigo. Naquele momento, em vez de nos indagarmos sobre o que faz uma sociedade, o que nos une, quais os valores em que acreditamos, qual é nossa vontade coletiva para o futuro, o que fizemos foi simplesmente celebrar o fato de termos ganhado e fomos triunfalistas.

Esse foi o pecado original. Confundimos o colapso de um sistema soviético em fim de linha com o triunfo da democracia. Mas democracia é muito mais que eleições, é um conjunto social de valores compartilhados que permite eleições. Eleições são evidentemente muito importantes, mas sem debate público, sem um alicerce compartilhado entre os cidadãos, tornam-se o que Fareed Zakaria (analista de política internacional) chama de democracia iliberal, que pode conduzir na verdade ao contrário da democracia.

Valor: E resulta no triunfo do indivíduo?

Guéhenno: Sim. Essa ideologia do indivíduo vem de longe, da ruptura na relação direta do indivíduo ao divino. Foi uma ruptura da religião que colocava antes de tudo a família, a tribo, como base da sociedade. Essa ideia do indivíduo foi fundamental para o desenvolvimento do mundo, com sua liberdade de espírito e de empreender. Mas, com o colapso do comunismo, o que vimos como triunfo do indivíduo foi ao mesmo tempo o apogeu e a descoberta de seus limites. Porque o indivíduo de algum modo isolado, cortado do coletivo, é algo muito angustiado.

O indivíduo precisa de fronteiras, de uma comunidade, de um engajamento coletivo. O que temos hoje são indivíduos que se afogam num mundo que eles não controlam. Daí esse sentimento de angústia e reação de xenofobia, nacionalismo, tudo isso que vemos e que é desastroso. É uma reação a essa imensa discrepância entre o indivíduo, a quem prometemos todos os poderes, e um mundo que o esmaga mais que o libera.

Valor: Isso explica a crise da política tradicional e o aparecimento de forças como Trump e suas cópias em outros países?

Guéhenno: Sim, acho que explica amplamente. Quando o comunismo desmoronou, inicialmente a social-democracia achou que sua hora tinha chegado. Mas, no rastro disso, houve uma perda de confiança no Estado, na capacidade do poder público de mudar a sociedade. Rapidamente a social-democracia foi identificada a uma forma de suavizar o capitalismo puro e duro, mais que de transformar realmente a sociedade. E partidos conservadores, que também podiam pensar que era sua hora, ao celebrar o mercado sem nuance, como vimos com Margaret Thatcher, que foi um grande sucesso político, igualmente atingiu o movimento conservador clássico.

Apareceram esses novos movimentos políticos que não são baseados em programas - e muito mais em identidade. Essa é uma mudança profunda. Frequentemente se vincula o populismo a razões puramente socioeconômicas, como erosão da classe média e aumento das desigualdades. Sim, é uma parte da explicação, mas só uma parte. Quando vemos a ascensão do que chamamos preguiçosamente de populismo no mundo, vemos que isso acontece em países extraordinariamente diferentes. O Brasil é diferente dos EUA, que é diferente do Reino Unido, que é diferente da Índia, que é diferente da Itália, e as situações socioeconômicas são diferentes. Há outras razões que são mais políticas.

Valor: Por exemplo?

Guéhenno: Por exemplo, o sentimento de que em todos os países há uma perda de controle, de que somos dependentes de ações que estão bem além de seu país e fora de seu alcance. Outro elemento são as novas tecnologias, com influência sem precedentes, e que facilitam a emergência de novos partidos num mundo inicialmente virtual, onde competem e desestabilizam estruturas políticas tradicionais. Antes a política evoluía lentamente, marcada pela proximidade. Agora, as pessoas se encontram na internet. E o mundo virtual encoraja a brutalidade. Estudos mostram que se pode ter muito mais sucesso na política evitando nuances. Na “nova política”, que agrupa pela identidade, mais que em torno de projetos, um discurso equilibrado, que mostra o pró e o contra, não interessa. O que interessa é o julgamento pleno de certeza, determinado. A lógica das comunidades virtuais é da violência. Primeiro, é uma violência virtual, e depois, quando se é suficientemente numeroso, o que chamo no meu livro de rio subterrâneo que incha fora da vista, pode fazer irrupção no mundo territorial. E nesse momento pode ter um impacto devastador, surpreende, sacode ou pode quebrar os partidos tradicionais, como a vitória de Donald Trump à Presidência dos EUA (em 2016), em que ninguém ou poucos acreditavam antes.

Valor: O sr. fala de declínio da democracia...

Guéhenno: Há um declínio porque justamente a democracia é reduzida à pura mecânica eleitoral, onde é transposta a ideologia do mercado pela qual o melhor produto é aquele que se vende melhor. Ora, o centro da democracia é a deliberação, a troca de ideias, a negociação de interesses. E quando se reduz a democracia à pura mecânica para determinar um vencedor, perdemos o que faz seu valor.

Valor: A truculência do discurso político é a tendência para atrair os eleitores?

Guéhenno: Sim, na política tradicional os partidos tentavam ganhar eleitores do centro, mostrar algo para eles se identificarem ao partido. Os partidos convergiam para o centro, em algum momento, e contendo extremos. Hoje, novos movimentos procuram sobretudo mobilizar sua base, marcar sua diferença. E assim acentuam o que os separam do adversário, endurecem o discurso, ofendem, buscam ser o mais violento possível, porque é isso que vai energizar a base. A linguagem política encolerizada se tornou a linguagem em várias democracias ocidentais.

Valor: O sr. menciona uma escolha entre GAFA, os gigantes do digital, e a China. Como explicar isso?

Guéhenno: O fenômeno que sacode tudo é a nova economia dos dados, que é tão importante quanto a Revolução Industrial. A revolução de dados muda a maneira como o poder e o saber vão ser distribuídos. O poder e a riqueza estão hoje na coleta e na gestão de dados. Há inquietações sobre efeitos mais visíveis desse poder, como a capacidade de espionagem que ameaça o espaço privado, a capacidade de manipulação que pode ameaçar as campanhas eleitorais. Mas os efeitos são muito mais profundos, porque é a estrutura mesmo das sociedades, nas suas dimensões políticas e econômicas, que estão sendo redefinidas pelos novos controladores de dados. Por isso que essas grandes empresas, todas americanas, passaram a ter uma importância gigantesca no mundo ocidental. A China também tem grandes empresas de dados e tem o Partido Comunista (PC). É interessante como o presidente Xi Jinping procura aumentar seu controle sobre as grandes empresas de dados porque ele percebe a dimensão desse poder. E ele provavelmente não quer um centro de poder independente do PC que se desenvolva na China e que um dia se torne mais importante que o partido. Isso coloca a China diante de escolhas difíceis e não sabemos como vai acabar. Se Xi e o partido querem controlar o poder dos dados com uma ditadura tradicional, colocando censores, vigilantes em todo lugar, não vão conseguir, ou o que vão é causar uma ossificação da sociedade, pois não se controla um país com 1,4 bilhão de habitantes dessa maneira. Outra solução é dar o poder aos algoritmos. É o que se passa no Ocidente, com Facebook, Twitter etc. Aceita deixar os algoritmos livres, mas não para polarizar, pelo contrário, para harmonizar, e isso causa muito medo. No Ocidente, vemos os algoritmos do lado comercial e vemos uma exaustão, um esgotamento dessa sociedade disfuncional onde todo mundo disputa com todo mundo.

Valor: O sr. aponta riscos de “tentação chinesa”. E pergunta se a China é o nosso futuro. Qual é a resposta?

Guéhenno: A grande diferença entre a China e a URSS é que a URSS era um fiasco econômico e a China é um sucesso econômico. Vemos em pesquisas que, no fundo, a ideia de país onde se fabrica uma espécie de bolha de felicidade é uma tentação forte. Alguns aspectos do dito modelo chinês, comparado a nossas sociedades democráticas em decomposição, ameaçam se tornar mais atrativos. A China tem tanto a repressão horrível aos uigures como tem a ditadura amena, quase invisível. O sistema chinês de crédito social, que Pequim tenta implementar, procura criar uma espécie de harmonia social que pode alimentar desejos de indivíduos desorientados em outras sociedades. Quando se combina isso com medo, porque em nossas sociedades hoje a única coisa que as mobilizam é o medo, isso pode resultar numa demanda de autoridade e de controle. É um verdadeiro risco em sociedades desorientadas, confusas, ao mesmo tempo hiperconectadas e hiperfragmentadas. Isso provoca a demanda de um poder que o protege como uma bolha e que gera suas emoções.

Valor: Os EUA com essa confrontação com a China colocam freios à “tentação chinesa”?

Guéhenno: Os americanos justamente estão numa situação difícil para contrapor-se ao modelo chinês porque o que vemos dos EUA hoje não é muito encorajador. É um país extraordinariamente polarizado, suas instituições políticas funcionam mais e mais dificilmente, as relações são ainda mais judicializadas e colocam um peso ainda maior nas costas dos juízes. Uma questão é se a Suprema Corte, com maioria de juízes nomeados por presidentes republicanos, e que sempre foi considerada acima da política, se ela manterá sua legitimidade numa sociedade mais e mais polarizada. Vemos uma fragmentação da sociedade americana que não é invejável. Há também as grandes desigualdades na sociedade americana, que o presidente Joe Biden tenta corrigir um pouco. Ele tem limites, com um Partido Democrata também rachado sobre a questão. Assim, o modelo americano como alternativa à China tem muito menos atrativo que tinha face à URSS. Ao mesmo tempo, é verdade que o mundo da internet é dominado por empresas americanas, e essa influência americana continuará muito potente no mundo. Mas no momento ela consegue mais fragmentar o mundo do que uni-lo, de forma que o triunfo americano é de uma certa maneira também o que fragiliza um pouco o mundo hoje. Os EUA vão colocar em ordem de batalha essas empresas digitais para fazer contrapeso à influência chinesa. Da mesma maneira que Xi Jinping tenta reforçar o controle sobre empresas de dados, nos EUA não é evidentemente o mesmo sistema, mas a lógica da confrontação com a China produzirá provavelmente uma aproximação mais e mais importante entre o Estado e essas empresas.

Valor: Entramos numa segunda Guerra Fria?

Guéhenno: A história aqui não se repete realmente. As economias ocidental e soviética eram dois mundos separados. Hoje, a China é o maior detentor de títulos do Tesouro americano, é um parceiro comercial fundamental para a Alemanha e mesmo para os EUA, é o primeiro cliente da Austrália. Não vejo muito uma dissociação aí. Os chineses construíram uma espécie de muralha da China virtual para a internet. Mas, ao mesmo tempo, sabem que para gerir suas empresas de maneira eficaz é preciso uma circulação de dados global. Distinguir entre dados a bloquear ou não é muito complicado. Assim, os dois mundos estão muito mais interligados do que ocorreu na Guerra Fria. Também a distinção hoje entre política externa e política interna é menos e menos pertinente. Os dois mundos são muito porosos. E cada um procurará influenciar, fazer mover do interior o outro país, e cada um vai procurar manipular a interdependência para seu proveito. Em vez de guerra fria no sentido clássico que conhecemos, hoje temos é uma competição muito mais difusa.

Valor: O recente acordo militar para transferência de tecnologia americana de submarinos para a Austrália amplia até que ponto a tensão entre americanos e chineses?

Guéhenno: O aspecto mais importante é que os EUA romperam uma espécie de acordo tácito, de consenso ocidental, de não transferir essa tecnologia muito proliferadora de submarino nuclear. Mudar sua posição é um fato importante e militariza ainda mais a rivalidade com a China. E isso significa que o prognóstico de 15 anos, 20 anos, é o de uma confrontação militar. O lado chinês vai acelerar o reforço da capacidade marítima chinesa, acelerar uma corrida aos armamentos na região do Pacífico, mas ao mesmo tempo essa rivalidade tomará vários outros caminhos. E os chineses esperam contornar a rivalidade militar por todo o tipo de meios que não são militares.

Valor: Uma confrontação militar é inevitável?

Guéhenno: Acho que nada é inevitável. É preciso confiar na capacidade humana de não fazer sempre besteiras. Mas vejo riscos reais de erro de cálculo. A China foi uma potência dominante do mundo por séculos. Quando ela renunciou à potência naval, na época do Renascimento, se isolou e perdeu o movimento de modernização que começou no século XVI e se acelerou no fim do século XVIII. Ela foi humilhada e tem uma revanche a tomar. Mas, nesse mundo complicado, fragmentado, um elemento de esperança é justamente que há uma multitude de vínculos que conectam o mundo. É um fator de inquietação, mas que pode também se tornar um fator de estabilização. Os Estados podem fazer erros catastróficos, que nos levariam a confrontação. Mas podemos esperar que todos esses vínculos paralelos aos Estados possam nos ajudar a não chegar a esses confrontos.

Valor: Os parceiros serão obrigados a escolher claramente entre EUA e China em certo momento?

Guéhenno: Espero que não. Acho que para os europeus, para os brasileiros, sempre haverá maior proximidade com parceiros com tradição democrática. Ao mesmo tempo, creio que há um desejo que cresce de um país não estar em situação de “conosco ou contra nós”. Um mundo onde há diferentes maneiras de pensar a relação do indivíduo ao coletivo é a melhor garantia de pluralismo e de paz. Países que não estão na linha de confrontação direta, como o Brasil e como os europeus, têm todo interesse de conversarem, não para formar blocos, mas para mostrar que pode haver respostas diferentes.

Valor: Crise do Ocidente, tentação chinesa, potência de dados. Quais alternativas a tudo isso?

Guéhenno: Tento desenhar algumas respostas no livro. Acho que devemos refletir sobre uma nova governança de dados, pela qual o poder dos dados não fique nas mãos de empresas nem nas mãos de um Estado. Creio que essa é uma das questões que pessoas que prezam o pluralismo devem se colocar. Quanto à questão de legitimidade da autoridade, acho que toda tentativa de democracia direta, e até sorteio, por exemplo, é uma resposta superficial, porque não é reproduzindo uma sociedade disfuncional que vamos torná-la funcional e isso tampouco resolve a falta do debate. Também num mundo em que o conhecimento supera mais e mais a capacidade de cada indivíduo, a relação entre saber e poder está mal resolvida hoje. Vimos na pandemia de covid-19 de um lado governos que procuram ignorar o saber, o que é catastrófico, e de outro governos que se escondem atrás do saber. Ora, há espaço para o saber e para reconhecer sua utilização e há questões que são de natureza política. A medida do risco é uma questão científica. O grau de risco a que estamos dispostos é do campo da política.

 

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