EDITORIAIS
A punição depois da CPI da Covid
O Globo
Não é trivial a coleção de fatos apurados
pela CPI da Covid. Não se trata, como no passado, apenas de investigar
corrupção, enfraquecer adversários e aproveitar os holofotes — embora tais
ingredientes também estejam presentes. Desta vez, o inquérito dos senadores se
debruçou sobre um evento singular: o morticínio de 600 mil brasileiros na
pandemia. Nunca houve CPI como esta. À medida que os trabalhos se aproximam do
desfecho, o desafio do relatório final é atribuir as responsabilidades e
configurar os crimes diante de fatos chocantes e revoltantes por si sós. Eis os
principais:
1) O presidente Jair Bolsonaro desprezou as
normas sanitárias e pôs em risco a saúde da população, ao promover e participar
de dezenas de aglomerações, desdenhar o uso de máscaras e o distanciamento
social, recomendados pelo consenso científico;
2) O governo federal sabotou medidas de
prevenção e defendeu a ampliação do contágio — portanto, das mortes — como
forma de atingir mais rápido a “imunidade de rebanho”;
3) Desde o início da pandemia, Bolsonaro
criou um gabinete paralelo de aconselhamento, à revelia dos organismos
oficiais, formado por pseudocientistas, empresários e políticos alinhados
ideologicamente;
4) O governo federal tentou manipular o
número de mortes para reduzir o impacto público da pandemia;
5) Bolsonaro e o governo incentivaram a
produção e distribuição de milhões de comprimidos de cloroquina e do “kit
Covid” para o “tratamento precoce” com drogas ineficazes, temas de propaganda
oficial;
6) Empresários próximos ao governo
financiaram uma campanha de desinformação que pôs em risco a saúde pública, com
foco em teses descabidas como “imunidade de rebanho”, “tratamento precoce”,
“isolamento vertical” e mentiras contra as vacinas;
7) O governo desdenhou ofertas de vacinas
que poderiam ter evitado centenas de milhares de mortes;
8) Representantes do governo participaram
de esquemas para importar vacinas de intermediários suspeitos em troca de
propina. Informado sobre um dos esquemas, Bolsonaro nada fez;
9) No auge da tragédia no Amazonas, o
Ministério da Saúde ignorou os hospitais em colapso sem oxigênio, enquanto
enviava cloroquina ao estado;
10) O governo foi omisso diante da
população indígena. O resultado foi mais contágio e mais mortes;
11) Pacientes do Amazonas e do Rio Grande
do Sul foram usados sem consentimento como cobaias em testes pseudocientíficos
sem aval dos organismos éticos competentes;
12) Acusações de uso de cobaias humanas sem consentimento e fraudes se estendem à operadora de saúde Prevent Senior, cujo corpo técnico foi vinculado ao gabinete paralelo de aconselhamento a Bolsonaro.
Esses são os fatos. É deles que derivarão
as consequências jurídicas. Apontar o que configura crime, quem são os
acusados, processá-los e puni-los será outro desafio nada trivial. No parecer
técnico encaminhado ao Senado, a comissão de juristas liderada pelo advogado
Miguel Reale Júnior dividiu os tipos penais em cinco grupos, que poderiam ser
reunidos em três, de acordo com o caminho dos processos.
Primeiro, os crimes de responsabilidade,
cujo julgamento cabe ao Congresso. O parecer atribui a Bolsonaro o “desrespeito
aos direitos à vida e à saúde” garantidos na Constituição. Seria motivo para
mais um pedido de impeachment, além dos 131 a aguardar decisão do presidente da
Câmara. Devido à natureza intrinsecamente política do impeachment, que exige
dois terços na Câmara e no Senado, é improvável essas acusações prosperarem.
Segundo, os crimes contra a saúde, a paz e
a administração públicas, cujo julgamento cabe à Justiça comum. Nesse capítulo,
o parecer inclui, contra Bolsonaro ou integrantes do governo, acusações de
infração de medida sanitária, epidemia, charlatanismo, incitação ao crime,
corrupção passiva, estelionato, advocacia administrativa e prevaricação. No
caso específico do presidente, enquanto ele estiver no poder, a abertura de
processo dependeria da Procuradoria-Geral da República (PGR) — cujo titular,
Augusto Aras, é conhecido pela leniência — e da autorização de dois terços da Câmara.
O contexto político torna novamente improvável um processo no curto prazo.
Há, por fim, os crimes contra a humanidade,
cujo julgamento caberia ao Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia. Estão
incluídos aí os fatos relativos aos povos indígenas e à crise no Amazonas. O
relatório final da CPI deveria seguir a recomendação dos juristas e evitar
acusar Bolsonaro pelo crime que está na boca de todos os adversários políticos:
o genocídio.
Tal acusação não se sustenta. Na definição
jurídica, o genocídio envolve a intenção de destruir um grupo étnico,
religioso, nacional, racial, cultural, de gênero etc. Por mais revoltantes que
sejam os fatos apurados, nenhum corresponde a isso. “Com respeito ao genocídio,
a evidência que vi não sustenta as exigências estabelecidas no artigo 6º do
Estatuto de Roma”, afirma o franco-britânico Philippe Sands, jurista que
defendeu várias causas no TPI.
Não significa que as barbaridades de
Bolsonaro e dos demais envolvidos devam ser minimizadas. “Não vi as provas em
detalhes, mas, pelo disponível publicamente, parece defensável a acusação de
crimes contra a humanidade, embora difícil de estabelecer”, diz Sands. Trata-se
de um tipo penal mais amplo, que inclui atos desumanos como tortura,
escravidão, apartheid, violência sexual ou deportação forçada. A principal
dificuldade (imposta pelo artigo 7º) seria mostrar que se tratou de “ataque
generalizado ou sistemático contra a população civil”. O parecer dos juristas
aponta nos fatos o contexto exigido para isso, mas o êxito em Haia, mesmo
desimpedido pelas circunstâncias políticas locais, não seria fácil. O tribunal
nunca julgou uma causa do tipo, e o procurador teria de correr um risco
imponderável.
Os caminhos oferecidos pela Justiça para
punir os responsáveis pela tragédia são íngremes. Não se deve, por isso,
descartar a chance de mais esta CPI ter pouca consequência prática. Mas eles
não devem ser abandonados. A memória dos mortos exige reparação.
Agressividade à esquerda
O Estado de S. Paulo
Mesmo depois dos danos causados ao Brasil, Lula prega a irresponsabilidade fiscal e a cizânia, como se vê pelo comportamento de seus apoiadores
O bolsonarismo não respeita quem pensa de
forma diferente. Quando era deputado federal, Jair Bolsonaro defendeu o
fuzilamento de Fernando Henrique Cardoso. Na Presidência da República, continua
na mesma rota de intolerância e violência. Não apenas utiliza o aparato estatal
para perseguir adversários políticos, como suas milícias digitais promovem
campanhas difamatórias na internet contra os que resistem aos intentos
bolsonaristas.
Mas a violência e a agressividade na
política não são exclusividade do bolsonarismo. As ameaças sofridas pela
deputada Tabata Amaral, por ocasião de sua filiação ao PSB, recordam como parte
da esquerda também é intolerante, desrespeitosa e agressiva. O ator José de
Abreu, conhecido apoiador do PT, reproduziu em sua conta no Twitter mensagem
que dizia: “Se eu encontro (a Tabata)
na rua, soco até ser preso”.
A publicação gerou imediata repercussão,
com inúmeras manifestações de solidariedade à deputada. No entanto, houve
também por parte de alguns simpatizantes da esquerda a tentativa de relativizar
a agressividade contra Tabata Amaral, mencionando como contraponto suas opções
políticas. Ou seja, o princípio da dignidade humana, pedra basilar dos direitos
humanos, não valeria sempre. A depender das escolhas políticas da vítima, nem toda
violência ou intolerância seria abominável.
Além disso, a ignorância também está
presente em setores da esquerda. Se é vergonhoso que Jair Bolsonaro fale, na
Assembleia-Geral da ONU, que “estávamos à beira do socialismo”, várias
manifestações de militantes de esquerda reproduzem obtusidades e preconceitos
igualmente constrangedores.
“Não nos esqueçamos (de) que Tabata do Amaral estudou
nos USA, apoiada por um bilhardário (sic)
brasileiro. Ela se embebeu da ideologia destas duas fontes. Seria bom se voltasse
às origens humildes de onde veio e aprender (sic)
com o povo. Os olhos suplicantes das crianças pedindo comida a converteriam”,
escreveu Leonardo Boff em sua conta no Twitter.
O post do
conhecido teólogo, valendo-se do preconceito como arma política, também não é
um caso isolado. Seu conteúdo remete ao constante discurso do PT, sempre
carregado de imprecisões, simplismos e, não raro, do mais cabal
negacionismo.
A esquerda mostra-se muito arredia a
qualquer comparação entre bolsonarismo e lulopetismo. Em sua ótica, haveria uma
diferença radical quanto ao compromisso das duas forças políticas com a
democracia, o que inviabilizaria, por princípio, qualquer possibilidade de
cotejo entre elas. A realidade é um pouco mais embaraçosa, no entanto.
O apoio de Lula a regimes não democráticos,
como o da Venezuela ou de Cuba, campeões de violações de direitos humanos em
nome do “socialismo”, revela que sua defesa da democracia depende da plateia.
Não se trata de uma convicção firme. Outros interesses podem condicioná-la, sem
maiores rubores.
A defesa lulopetista da “regulação da
mídia”, sob o argumento de que a imprensa persegue Lula, também contraria os
fundamentos do Estado Democrático de Direito, sendo, portanto, tão
constrangedora quanto a hostilidade bolsonarista à imprensa. Não cabe ao Estado
determinar o que os cidadãos podem ou não saber.
Por fim, o lulopetismo e o bolsonarismo se
equivalem no negacionismo. Bolsonaro, por exemplo, não reconhece que errou ao
dificultar a aquisição de vacinas e continua pregando o uso da cloroquina no
tratamento contra a covid, custando milhares de vidas de brasileiros, apenas
para satisfazer os interesses eleitorais do bolsonarismo. Incapaz de enfrentar
com responsabilidade a pandemia, Bolsonaro optou por negar sua gravidade, instaurando
uma revoltante política de descaso com a vida da população.
Igualmente negacionista e repleta de
interesses políticos é a recusa do PT em admitir seus erros na seara econômica,
na conivência com a corrupção e com o mau uso do dinheiro público e na
disseminação do ódio no País. Mesmo depois de todos os danos causados ao
Brasil, Lula continua pregando a irresponsabilidade fiscal e a cizânia, como se
vê pelo comportamento de seus apoiadores. A esquerda pode ser democrática e
responsável – tudo o que o lulopetismo não é.
Empresários pelo clima
O Estado de S. Paulo
Boa parte do empresariado está fazendo a sua parte em prol do meio ambiente
Em carta aberta, presidentes de 105 empresas nacionais e
estrangeiras e de 10 entidades setoriais defenderam metas ambientais ambiciosas
e o protagonismo do Brasil nas negociações do clima. Às vésperas da Cúpula
do Clima da ONU (COP 26), a ser realizada em Glasgow em novembro, a iniciativa
coordenada pelo Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento
Sustentável (CEBDS) chama a atenção por dois motivos: o contraste entre o
engajamento do setor produtivo e a incúria do governo; e o fato de que os ideais
defendidos na carta são alicerçados por ações concretas por parte dos
signatários.
“É possível trazer escala à inovação e às
boas práticas e planejar estrategicamente para que o Brasil realize rapidamente
o seu potencial de crescimento sustentável”, diz a carta, “promovendo uma
retomada verde (green recovery) fundada em bases de economia circular, de baixo
carbono e de inclusão.” Entre as iniciativas das empresas estão medidas para a
redução e compensação das emissões de gases de efeito estufa (GEE), a
precificação interna de carbono, a descarbonização das operações e cadeias de
valor, investimentos em tecnologias verdes e o estabelecimento de metas de
neutralidade climática até 2050.
Das 38 emissões de títulos de dívida de
empresas brasileiras no exterior em 2021, 16 (42%) foram ESG (sigla em inglês
para boas práticas “ambientais, sociais e de governança”). É mais do que o
dobro das sete de 2020. Das 13 emissões previstas até novembro, pelo menos
metade comporta compromissos de sustentabilidade.
Segundo um estudo apoiado pelo CEBDS, é
possível, já em 2025, reduzir as emissões de GEE em até 43% em relação aos
níveis de 2005. Os executivos defendem a adesão a metas baseadas em conceitos
científicos e práticas de transparência financeira, com a adoção de mecanismos
de financiamento para a promoção da transição climática e o combate enérgico ao
desmatamento. Particularmente importante é a implementação integral do
RenovaBio, a recém-aprovada política de pagamento por serviços ambientais.
Dos 2,1 bilhões de toneladas de dióxido de
carbono emitidas pelo Brasil em 2019, quase metade decorreu do desmatamento, e
98% desse desmatamento é ilegal. Assim, a primeira e mais importante demanda do
empresariado, em linha com entidades e governos internacionais, é simplesmente
que o governo faça valer as leis brasileiras, em particular o Código Florestal.
Além disso, os executivos pedem um
arcabouço político-regulatório que apoie uma trajetória sustentável, em
especial a adoção de regras que possibilitem o desenvolvimento de mercados de
carbono voluntários e regulados. A possibilidade de compra de créditos de
carbono por parte das empresas para financiar atividades que compensem seus
déficits em relação às metas climáticas é um mecanismo crucial previsto no
Acordo de Paris, mas até o momento permanece não regulamentado. A pauta será
central na COP 26.
Os empresários solicitaram encontros com os
ministros de Meio Ambiente, Relações Exteriores, Economia e Agricultura. “Na
carta, estamos dizendo ao governo: ‘por favor, avance, pois nós vamos dar a
retaguarda’”, disse a presidente do CEBDS, Marina Grossi. “Para fora do Brasil,
estamos mostrando que o País tem grandes empresas e instituições, com um peso
grande do PIB, fazendo a coisa certa.”
Um levantamento do Programa de Investimentos
Verdes no Brasil identificou a necessidade de R$ 3,6 trilhões nos próximos 20
anos em obras de infraestrutura sustentáveis nos setores de energia, iluminação
pública, saneamento, gestão de resíduos sólidos, telecomunicações, transporte
urbano, portos, hidrovias e ferrovias. Estima-se que esses investimentos
poderiam gerar 2 milhões de empregos.
Como disse Denise Hills, diretora de
sustentabilidade da Natura, “os ganhos para o Brasil não serão só em termos
financeiros, mas também socioambientais e reputacionais”. Nada sugere que a
insensibilidade do Planalto aos dois últimos ganhos seja remediável. Se ao
menos o primeiro servir para que o governo faça a sua parte, já será um avanço.
A pandemia e as prioridades na educação
O Estado de S. Paulo
Encontro mostrou os problemas causados pela pandemia e apontou soluções
Por causa da pandemia, as escolas
brasileiras ficaram fechadas 178 dias, só em 2020. Mas, se para os alunos dos
colégios privados o ensino funcionou de modo eficiente e suas perspectivas
futuras no mercado de trabalho não foram afetadas, na rede pública de ensino
básico ocorreu o oposto. Para seus alunos, 2020 foi um ano marcado por perda de
aprendizagem, o que poderá agravar as desigualdades regionais e sociais do
País. Como evitar esse risco?
Encontrar uma resposta para essa pergunta
foi o objetivo do Summit
Educação Brasil 2021, promovido pelo Estado. O evento foi realizado
entre os dias 15 e 17 de setembro e contou com a participação não só de
gestores escolares, professores e pedagogos, mas, também, de representantes da
Unesco e pesquisadores sobre inteligência artificial e uso das novas
tecnologias de comunicação para transmissão de conteúdos didáticos.
Os temas mais discutidos foram os problemas
relativos ao atraso escolar dos alunos das escolas públicas e ao aumento do
índice de evasão escolar, principalmente no ensino médio. Com base em
diferentes pesquisas, os participantes do Summit lembraram que os alunos oriundos de
famílias mais vulneráveis foram os que menos tiveram acesso a ferramentas
digitais de ensino e os que mais sofreram os efeitos indiretos do fechamento
das escolas, como negligência e violência doméstica.
Por isso, esses estudantes correm o risco
de regredir, em matéria de aprendizagem, podendo nos próximos anos concluir a
9.ª série do ensino fundamental ou se formar na 3.ª série do ensino médio sem,
contudo, terem aprendido o conteúdo das séries anteriores. Os números são
alarmantes. Alunos que cursaram a 2.ª série do ensino médio em 2020, por
exemplo, iniciaram a 3.ª série em 2021 com proficiência em português e em
matemática de somente 9 a 10 pontos na escala do Sistema de Avaliação da
Educação Básica (Saeb).
Antes da pandemia, a média era de 20 pontos
em português e de 15 pontos em matemática – e, mesmo assim, ela estava bem
abaixo da média dos alunos dos países-membros da OCDE. Em outras palavras, os
alunos da rede pública brasileira de ensino fundamental e de ensino médio terão
diploma, mas não conhecimento sistematizado. Desse modo, enfrentarão problemas
para ingressar futuramente no mercado formal de trabalho. O máximo que conseguirão
são empregos ruins e de baixa remuneração, o que os impedirá de se emanciparem
socialmente. E isso não só tornará mais lenta a retomada do crescimento, como
também poderá comprometer a produtividade da economia brasileira, tornando o
País menos competitivo no mercado global.
O que fazer? Para os participantes do Summit, a resposta está na
ampliação da jornada escolar, na revisão dos currículos e na valorização do
professorado. Segundo eles, essas medidas são fundamentais para que o País
possa contar com uma educação pública com qualidade e equidade, que é a
condição necessária, ainda que não suficiente, para a redução das desigualdades
aprofundadas durante o período em que as escolas ficaram fechadas. Mas, para
que possam ser eficazes, elas precisam de uma urgente melhoria na gestão das
redes educacionais, que estão a cargo dos Estados e municípios, e isso requer a
articulação de um pacto federativo para definir de modo mais preciso a
responsabilidade de cada nível de governo.
O problema é que essa articulação só pode
ser feita pela União e, desde seu início, como reconheceram os participantes
do Summit, o governo
Bolsonaro em momento algum se dispôs a assumir essa tarefa. Pelo contrário, ele
não apenas se omitiu, como também adotou medidas que estão desmontando o que
foi erguido com base nas políticas educacionais das últimas três décadas.
Esse foi o grande mérito do Summit promovido pelo Estado: mostrar o que precisa ser feito para evitar que os problemas causados pela pandemia e a desastrosa gestão do atual governo na área de ensino não acabem negando aos alunos das escolas públicas seu direito de aprendizagem assegurado pela Constituição.
Menos mal
Folha de S. Paulo
Ainda que efêmera, trégua de Bolsonaro
mostra força de instituições democráticas
Crises sucessivas marcam a história recente
do Brasil desde que, em 2014, os anabolizantes irresponsavelmente administrados
para sustentar a atividade econômica se dissolveram e o país começou a
mergulhar numa recessão profunda.
A recuperação iniciada dois anos depois mal
acompanhou o ritmo de crescimento da população. Essa trajetória claudicante foi
interrompida pela debacle mundial provocada pela pandemia.
O retrato do país que emerge desses sete
anos de tempestades revela desemprego alto, renda corroída, contas públicas
estorvadas, inflação, juros e desigualdades rampantes, energia escassa, moeda
depreciada e investidores em fuga.
O conjunto de flagelos simultâneos veio
somar-se aos redutores estruturais do progresso nacional.
A insegurança das regras econômicas, a
predação do Orçamento, a baixa eficiência dos serviços públicos e a
escolarização precária da maioria —agravada pela longa ausência das aulas
presenciais— estão onde sempre estiveram.
Tudo de que o Brasil prescindia nesse
período de acúmulo de problemas era um governo como o de Jair Bolsonaro,
incapaz na administração da máquina federal e também no manejo da política.
Diagnósticos errados —a começar dos
exarados pelo presidente da República—, assessores de qualidade deplorável e a
condução ginasiana das relações com outros Poderes e organizações estatais
realizaram a proeza de piorar um quadro em si mesmo grave e de difícil
encaminhamento.
Aos
mil dias do experimento bolsonarista,
e a 15 meses do fim do mandato, equivaleria a um exercício de fé, descolado da
realidade, predicar a melhora do aspecto gerencial do governo. Essa poderá
tornar-se uma expectativa razoável, a depender das urnas, a partir de janeiro
de 2023.
Já o presidente da República poderá desde
logo contribuir para a distensão do ambiente institucional, desde que consiga
reprimir os seus instintos mais primitivos, exibidos em toda sua rudeza nos
comícios do Dia da Independência.
Prova-o o intervalo de poucas semanas que
se iniciou quando Bolsonaro colidiu com o muro da deposição constitucional e
decidiu, com o inusitado auxílio do ex-presidente Michel Temer (MDB), refrear a
cavalgada golpista.
Ao comando do chefe, como costuma acontecer
em solidariedades de tipo tribal, os arruaceiros do bolsonarismo puseram-se em
retirada. Nesse contexto menos belicoso, o ministro Alexandre de Moraes revogou
ordem de prisão preventiva de um militante digital das causas do presidente.
Do Tribunal Superior Eleitoral vieram
sinais de que, dentro da institucionalidade, há caminhos para lançar ainda
mais luz sobre o exemplar processo de votação brasileiro. A corte
adicionou um integrante das Forças Armadas à comissão multifacetada de
transparência das eleições.
Quando Jair Bolsonaro deixa de ameaçar e
atacar diariamente o Supremo Tribunal Federal, os motivos para o Senado
continuar postergando a sabatina do indicado do Planalto à corte, que já não
eram indiscutíveis, se enfraquecem.
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco
(DEM-MG), captou corretamente o desanuviar da atmosfera quando se juntou às
vozes que estimulam Davi Alcolumbre (DEM-AP) a marcar para logo a inquirição de
André Mendonça na Comissão de Constituição e Justiça.
Há bons argumentos para os senadores
recusarem a condução do ex-ministro da Justiça à vaga aberta pela aposentadoria
de Marco Aurélio Mello, mas não
mais para deixarem de cumprir seu dever de examinar o indicado presidencial.
Ninguém que acompanhou os últimos mil dias
de noticiário atribuirá alta probabilidade à hipótese de que Bolsonaro consiga
sustentar por muito mais tempo o comportamento daquele que, se não ajuda, ao
menos atrapalha menos.
Se ele enxergou mesmo o fato óbvio de
que sua
única chance de permanecer no cargo em 2023 é vencer as eleições,
contribuir para a normalização do cenário institucional seria o meio natural de
tentar equacionar os desafios mastodônticos para recuperar popularidade e
competitividade.
Apenas com tranquilidade na governança o
país poderá atender ao anseio de ampliar a proteção aos mais pobres sem apelar
a invencionices fiscais —que seriam, no quadro vigente, de pronto traduzidas em
mais inflação e descrédito.
Em qualquer hipótese, resta indiscutível
que sai vencedora a preferência da população, de seus representantes e das
instituições pela normalidade democrática, a ser novamente consagrada nos
pleitos marcados para o próximo ano.
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