O Globo
‘Vocês nada fizeram de errado, mas ainda assim
foram gravemente injustiçados. Eu peço desculpas e lamento profundamente que
este pedido de desculpas tenha tardado tanto.’ A frase faz parte de uma
histórica penitência por parte de um presidente dos Estados Unidos — no caso, o
democrata Bill Clinton em 1997. Clinton se dirigia a um grupo específico que
convidara à Casa Branca — sobreviventes e familiares de um experimento médico
com humanos realizado 65 anos antes pelo Departamento de Saúde Pública do país.
À época (1932), a sífilis corria solta entre negros de um condado do estado do Alabama. Acenando com tratamento gratuito, uma equipe do governo havia aliciado 399 homens, todos filhos ou netos de escravizados, para ser tratados por sintomas de “sangue ruim”. Jamais foram informados de tratar-se de sífilis, doença sexualmente transmissível. Outros 201, também negros, porém sadios, integraram o grupo de controle do estudo.
O experimento prolongou-se por quatro décadas
até ser denunciado por fonte anônima e ser exposto pela imprensa. Nesse
ínterim, 28 pacientes-cobaias haviam morrido da doença, outros cem de
complicações inerentes a ela, 45 esposas estavam contaminadas, e 19 de seus
filhos infectados. Só então o Congresso americano apertou a legislação sobre
pesquisas médicas em humanos, além de prover ajuda médica vitalícia aos
sobreviventes e a seus familiares. O pedido de desculpas oficial, face a face
com os vitimados, com direito a transmissão por satélite, demorou outros 25
anos. Clinton não precisou atenuar o crime cometido, pois não fora responsável
pelo ato. Falou em traição do governo, quebra de confiança na democracia,
cidadãos usados como cobaias, devastação moral. Também anunciou a criação de um
Centro Nacional de Bioética no condado vitimado, com bolsas de estudos para
estudantes negros. E concluiu:
— Aqueles que conduziram o estudo
diminuíram a estatura do ser humano, abandonaram o mais básico dos preceitos
éticos... Hoje podemos apenas pedir desculpas. Só [os sobreviventes] têm o
poder de perdoar.
O episódio remete não apenas ao Brasil de
hoje, com as experimentações de mortandade por Covid-19 praticadas pelo governo
Bolsonaro e pela Prevent Senior. O caso também ajuda a tipificar o ritual
social de pedirmos desculpas públicas. Algumas delas nem sequer admitem o erro,
são escancaradamente insinceras e acrescentam justificativas pífias pela
ofensa. Exemplo: a memorável “Declaração à Nação” em que Bolsonaro afirma nunca
ter tido a intenção de agredir quaisquer Poderes com suas falas golpistas do 7
de Setembro. “Por vezes contundentes”, elas teriam decorrido “do calor do
momento e dos embates que sempre visam o (sic) bem comum”. Nem mesmo o ghost
writer Michel Temer conseguiu contrabandear a palavra “desculpas” no texto.
Outras adotam o estilo autodefesa, com direito a confissão.
Na prática, a eficácia de todo pedido de
desculpas depende da linguagem usada, da sinceridade a ele imprimida e dos
princípios morais que o geraram. Palavras pertencem umas às outras, ensinou a
sábia Virginia Woolf. A também escritora Susan Sontag chegou a fazer um
discurso inteiro sobre a consciência da palavra ao receber o Prêmio Jerusalém
em 2001. Palavras são capazes de expandir ao infinito seu significado ou, ao
contrário, contraí-lo, e prova disso tivemos numa das sessões da CPI da Covid
em Brasília.
O investigado da quinta-feira, empresário
bolsonarista Otávio Fakhoury, chegou ao Senado ancorado por um batalhão, com a
máscara em permanente desalinho. É provável que tivesse sido preparado para
tudo e todo tipo de inquirições —menos ficar face a face com um homem honrado e
transbordante de emoção represada chamado Fabiano Contarato.
Convidado a ocupar a cadeira da presidência
para fazer um comunicado inicial, de natureza pessoal, o senador Contarato fez
o uso mais nobre do poder da palavra — clara, verdadeira, sincera. Expôs com
grandeza e dor o ataque homofóbico com que Fakhoury pretendera ridicularizá-lo
nas redes sociais e alongou-se, com fala cristalina, sobre decência, respeito ao
outro, humanidade. Também exigiu da figura que murchava a seu lado um pedido de
desculpas públicas, para si e toda a comunidade LGBTQIA+. Em nove minutos, usou
a palavra com uma força civilizatória raras vezes ouvida no país. Difícil
lembrar-se de outro parlamentar da República, deputado ou senador, que tanto
educou, honrou e comoveu o país.
A resposta de Fakhoury, que deverá
responder por seus atos ao Ministério Público, saiu suada, amedrontada,
embrulhada na máscara caída abaixo do nariz. Fraseados como “respeito a sua
família...”, “tenho amigos de todos os lados e orientações ...”, “não tive a
intenção ...”, “se lhe ofendi...”, “foi um comentário infeliz...”, “peço
desculpas e me retrato...” soaram ocos. Palavras ocas têm efeito bumerangue, e
o empresário se percebeu nu em público.
Ao final, pudemos nos alegrar com a foto do
cidadão Contarato radiante em passeio ao ar livre ao lado do companheiro de dez
anos e os dois filhos nos ombros do casal. A imagem foi postada pelo próprio
senador. Sinal de que aquelas duas crianças talvez cresçam no Brasil que
merecem e que todos nós queremos.
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