O Globo
“A
felicidade não se compra” (“It’s a wonderful life”), o clássico filme natalino
de Frank Capra, completa 75 anos, e a efeméride é ótimo pretexto para revê-lo.
Quem quiser pode assistir hoje (25/12) às 13h15 no Telecine Cult.
Os filmes de Capra celebram as virtudes do
homem comum. Em “O galante Mr. Deeds” (1936), um homem simples de uma cidade do
interior herda uma grande fortuna e é perseguido por interesseiros. Em “Do
mundo nada se leva” (1938), uma garota de família trabalhadora e alegremente
excêntrica enfrenta a família do noivo rico que quer comprar as casas da
região. Em “A mulher faz o homem” (1939), um cidadão ingênuo é eleito para o
senado americano, onde tem de enfrentar a política corrompida.
Os personagens de Capra são trabalhadores que mantêm as famílias unidas e atravessam com otimismo e alegria os momentos difíceis. Seus filmes celebram de maneira um pouco ingênua a honestidade, a simplicidade e a decência do trabalhador americano, em contraste com a ganância, a corrupção e o rebaixamento do espírito trazidos pelo dinheiro e pelo poder.
Essa fascinante sequência de filmes é
interrompida pela Segunda Guerra Mundial. Em 1941, apenas quatro dias após
Pearl Harbor, Capra, com 44 anos, se alista e colabora com o esforço de guerra
produzindo uma série de documentários destinada aos soldados chamada “Por que
lutamos” (1942-1945).
“A felicidade não se compra”, de 1946, é
sua volta ao cinema comercial, num projeto independente, sem o controle dos
estúdios. É seguido de mais um filme, “Sua esposa e o mundo” (“State of the
Union”), de 1948. O pouco sucesso dos dois filmes numa sociedade profundamente
mudada pela guerra o leva a abandonar o cinema de ficção e a dedicar o resto da
carreira ao documentário de divulgação científica.
Para quem não viu ou não se lembra, “A
felicidade não se compra” conta a história de George Bailey (James Stewart), um
homem decente que sacrifica seus interesses e ambições para fazer o que é
certo.
Aos 12 anos, George salva o irmão num
acidente, perdendo a audição; jovem, sacrifica uma carreira na engenharia para
ajudar a pequena empresa de construção da família; quando se casa, gasta todo o
dinheiro da lua de mel para recuperar a empresa. Seu antagonista é o Senhor
Potter, um magnata local ganancioso e inescrupuloso que tenta tirar o negócio
da família e desdenha o compromisso social da pequena construtora. Para o
desespero final de George, seu tio perde o dinheiro do depósito da empresa, que
é encontrado (e não devolvido) pelo Senhor Potter, colocando em risco anos de
dedicação e sacrifício.
Embora moralmente corretas, as escolhas de
George vão lhe trazendo problemas e acumulando frustrações, até que ele se vê à
beira do suicídio. Quando está para saltar de uma ponte, é abordado por um anjo
da guarda que o leva a contemplar o que teria acontecido com as pessoas a seu
redor se não existisse — de maneira parecida, mas um pouco diferente do que
fazem os fantasmas do “Conto de Natal” de Charles Dickens. Após ver como suas
ações impactaram as pessoas ao redor, George implora para voltar a viver.
Embora seja um dos filmes mais reprisados
no período de Natal, “A felicidade não se compra” não é um filme radiante, mas
um pouco sombrio. A vida que George decide retomar não é luminosa. Embora a
cidade se cotize para pagar a dívida da construtora, o Senhor Potter escapa
impune, e os outros problemas de George não vão embora.
O título original em inglês, “É uma vida
maravilhosa”, tem algo de sarcástico: a despeito da barulhenta animação com que
ele enfrenta os desafios, a vida de George e de outros como ele não é
maravilhosa. Mas suas ações fazem com que uma vida dura e difícil seja um pouco
menos ruim para todos.
Este ano de 2021 não foi nem um pouco fácil
para a maioria dos brasileiros, em meio a desemprego, inflação e pandemia. No
espírito de Frank Capra, vamos celebrar hoje aqueles trabalhadores e pessoas
comuns que enfrentaram grandes dificuldades e, por meio do trabalho honesto,
aliviaram um pouco os problemas coletivos.
Vamos agradecer aos enfermeiros e médicos
que arriscaram a vida para cuidar dos doentes, aos trabalhadores dos
supermercados e aos entregadores que assumiram a linha de frente e nos
permitiram manter algum distanciamento social, aos cientistas e trabalhadores
do Butantan e da Fiocruz que testaram e fabricaram as vacinas, a todos os
professores que seguiram ensinando as crianças. Neste ano difícil, a despeito
dos Senhores Potter que estão no poder, eles foram os Georges Bailey que
fizeram do Brasil um lugar menos ruim.
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