O Globo
Pouco se fala da corrupção moral de uma
sociedade que se acredita idêntica a um partido
"Fui afortunado na vida. Como regra,
meus interesses pessoais coincidiram com os interesses da sociedade —e é isso,
provavelmente, que constitui a genuína felicidade", escreveu Mikhail
Botvinnik no outono de sua existência. Há exatos 30 anos, no 25 de dezembro de
1991, outro Mikhail, Gorbachev, renunciou à Presidência da URSS, no
ato final do colapso do Estado Soviético. A "maior catástrofe
geopolítica do século 20", segundo Putin, deve ser celebrada porque,
depois dela, a linguagem empregada por Botvinnik perdeu, para sempre, sua
justificação filosófica.
O enxadrista Botvinnik, sexto campeão mundial, dono da coroa de Caíssa entre 1948 e 1963, com duas breves interrupções, criou a Escola Soviética de Xadrez, fonte de incontáveis grandes mestres e de uma supremacia absoluta que perdurou até 1972. "Eu não estava só; na luta pelos interesses da sociedade, tive apoio". O patriarca ingressou no Partido Comunista na pré-adolescência e, desde seu triunfo num forte torneio em 1935, tornou-se "o escolhido".
A direção do Estado-partido decidiu que
Botvinnik seria o representante máximo da URSS no campo de batalha
internacional do xadrez. Dali em diante, obteve privilégios inimagináveis para
outros enxadristas geniais. A coincidência entre seus "interesses
pessoais" e os "interesses da sociedade" manifestou-se, ainda,
nas pressões sofridas por rivais soviéticos para aceitar empates precoces que
favoreceriam o escolhido na classificação final de torneios e na hostilidade
oficial contra os compatriotas desafiantes nas disputas pelo título máximo de
1951 e 1960/61.
O "afortunado" nunca foi indigno.
Cortês, ascético, incansável, rigoroso, desempenhou o papel de mestre dos
futuros campeões Karpov, Kasparov e Kramnik. Ao que parece, nunca entregou-se à
bajulação exagerada das autoridades e jamais sujou as mãos nas tramoias
destinadas a solidificar seu predomínio. Além disso, circundou habilmente a
"solicitação" dirigida aos grandes enxadristas soviéticos em 1976
para que subscrevessem uma carta infame que denunciava como "traidor"
o auto-exilado Korchnoi. (Bronstein e Spassky recusaram-se explicitamente a
assiná-la).
Botvinnik, porém, acreditava sinceramente
na equivalência entre os interesses gerais e os dele mesmo. Nessa crença, que
não era exclusividade sua, encontra-se a raiz da imoralidade fundamental dos
sistemas totalitários.
"Nem todos com os quais me associei
foram tão afortunados quanto eu. Os interesses pessoais de alguns divergiam dos
da sociedade –e essas pessoas interferiram com meu trabalho. Então, surgiam
conflitos." O patriarca tinha o péssimo costume de fazer referência a
maléficos sujeitos ocultos ("alguns", "essas pessoas"). Mas
o que importa aqui é a legitimação da diferença: meu privilégio deriva dos
interesses da sociedade.
Os diagnósticos do campeão exprimem uma
lógica desenvolvida em duas etapas. A primeira não requer interpretação: seus
interesses pessoais e os da sociedade são a mesma coisa. A segunda exige
tradução: os interesses da sociedade são iguais ao do regime, ou seja, o
Estado-partido funciona como imagem espelhada da sociedade.
Arendt registrou que Eichmann era um
burocrata suave, "nem pervertido nem sádico", mas "terrivelmente
normal". Botvinnik, que não deve ser comparado ao criminoso nazista,
exprime o modo de pensar "terrivelmente normal" do cidadão soviético.
O campeão mundial teve privilégios excepcionais pois era uma peça de propaganda
política. Mas, em escala miniaturizada, todos os fieis ao partido podiam contar
com confortos vedados aos demais –e justificá-los por meio de argumentos
similares.
Os crimes sanguinários do totalitarismo soviético foram descritos em muitas obras. Pouco se fala, contudo, do crime incruento, cotidiano: a corrupção moral de uma sociedade que se acredita idêntica a um partido.
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