Valor Econômico
O petista se abrirá para projeto moderno e
consensual?
Em tempos turbulentos, previsões políticas
terminam na inclemência das redes. Principalmente no Brasil, um período de nove
meses pressupõe uma eternidade: tudo pode mudar, mudar novamente e mais uma
vez. É o país dos fatos novos e do assombro permanente. A experiência recomenda
observar apenas, mas a ansiedade exige especular sobre a eleição em outubro, o
que só é possível com os dados disponíveis hoje. Assim, os olhos de janeiro se
voltam para Luiz Inácio Lula da Silva.
A dinâmica política o tem favorecido: a
adesão de Geraldo Alckmin, a estagnação de Sergio Moro, o ambiente kafkiano
gerado por Jair Bolsonaro, tudo o beneficia. Paradoxalmente, dá vazão a
conhecidos traços do PT: disputas internas, hegemonismo, esquerdismo atávico e
o apego a antigos modelos de desenvolvimento tomam o centro do debate e
despertam temores em agentes políticos e econômicos.
Uma estratégia “winner takes all” seria de um erro colossal. Vencer a eleição num ambiente de barbárie pode ser mais fácil que governar. As circunstâncias de 2023 diferenciam-se de 2003; distribuir recursos, lotear ministério em troca da governabilidade - em certa medida, inevitável - não bastará. Mais complexo será estabelecer diagnósticos plausíveis, construir pontes, negociar agenda clara, factível e moderna; ampliar apoios de natureza programática.
Sem isso, o país não sairá do buraco e a
crise permanecerá: 2022 poderá repetir 2014, a eleição que não terminou e abriu
campo para o terceiro turno em que se vive até hoje.
A disposição ao conflito, baseada em egos
narcísicos de intelectuais e economistas, não é obstáculo de fácil superação. A
começar pela questão fiscal, um debate de surdos que estabelece falsa polêmica:
um lado atribui populismo e irresponsabilidade fiscal aos desafetos; estes, aos
primeiros, imputam insensibilidade social e um interessado viés financeiro na
questão. Soma zero.
A boa política pública se faz com foco e
zelo nos gastos; a segurança estimula a economia. O equilíbrio fiscal só faz
sentido se voltado ao bem-estar social. As questões se complementam. Isso
deveria ser consenso; infelizmente, não é.
José Manuel Durão Barroso,
ex-primeiro-ministro de Portugal (2002 -2004) e presidente da União Europeia
(2004-2014), em diálogo com o grupo “Derrubando Muros”, alertou que consensos
não surgem de dissensos: antes, é preciso partir do que, afinal, há de
concordância. O resto se faz no processo; no limite, arbitra-se no voto, mas
este não deve ser o ponto de largada. Singela clareza que tem faltado ao
Brasil. Ocioso perguntar quem iniciou a desinteligência.
O consenso, porém, é possível, como se viu
na experiência de Durão Barroso e no posterior processo de Portugal, chamado “A
Geringonça”. Recentemente, na coalizão alemã, entendida como um “semáforo” por
reunir social-democratas (vermelhos), ambientalistas (verdes) e liberais
(amarelos). O diagnóstico básico comum pariu um plano abrangente e moderno que
busca manter a Alemanha democrática, na liderança europeia, apta aos desafios
do século XXI, ao pós-pandemia e ao protagonismo chinês.
Acordos desse tipo demandam liderança
política efetiva e comunicativa capaz de unir, não dividir; somar, não
subtrair; compreender a possibilidade de consenso, antes de estimular disputas
aviltadas por interesses eleitorais paroquiais. Esse tipo de liderança se faz
na disposição para ouvir e interpretar as causas dos problemas do presente, os
desafios e o enorme potencial do futuro.
Lula está focado na construção de palanques
com os aliados de sempre. À parte da conquista da vaga presidencial, busca
conquistar ampla base política no próximo Congresso Nacional. Faz sentido,
servirá para protegê-lo do oportunismo, mas não será suficiente para “aggionar”
o país e superar a descrença e a desesperança dos últimos anos, responsáveis
pelo maior êxodo populacional registrado na história do Brasil.
Eleito, um programa moderno e eficaz - que
exceda o mero e, sim, necessário assistencialismo - será cobrado no dia
seguinte. Os antigos vínculos, que de algum modo marcaram a trajetória política
do petista - também baseados em elites patrimonialistas e corporativistas -,
serão de pouca valia. O tempo de seu governo foi superado por um inóspito mundo
em revolução, muito mais complexo e exigente. Novos interlocutores serão imprescindíveis.
O ex-presidente tem responsabilizado “as
elites” por sua prisão e pela eleição de Jair Bolsonaro. Precisará superar
ressentimentos desse tipo. Primeiro, porque não há “comitê central da
burguesia”, há elites múltiplas distribuídas em frações contraditórias entre
si. Dentre elas, parcelas modernas com capacidade de elaboração de projetos
inovadores e progressistas, articulados globalmente. Estão dispostas a dialogar
e contribuir para um país democrático, social e economicamente inclusivo.
Superado o esquerdismo e a maldição
patrimonialista, clientelista e corporativista, que desde sempre ronda os
governos, seria possível instituir relações e métodos novos, baseados numa
pauta moderna e plural, minimamente consensada na defesa da democracia, com olhos
para o futuro.
No “tour” europeu realizado em novembro,
questionado sobre que fazer, o ex-presidente foi sintético e prático, como deve
ser a comunicação política. Listou pontos de partida para uma pauta consensual:
o combate à fome; a preservação do meio ambiente; a criação de empregos. A
partir de um Estado democrático, republicano e responsivo, com o envolvimento
da sociedade, pode-se resgatar a paleta de cores do semáforo alemão. Haverá
vontade e liderança para isso? “Deixemos o pessimismo para dias melhores”, é
hora de conversar seriamente.
*Carlos Melo é cientista político e professor do Insper.
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