Personagens e lugares comuns não ocultam um
universo insólito e comum de argentinos e brasileiros e tal como ocorreu com o
apagão de 2001 lá e cá e que fez desnudar a luz do dia que a crise energética
que vivenciamos era o resultado de opções históricas equivocadas de nossas
ditaduras, que não planejaram a expansão e a diversificação do sistema
elétrico.
São esses os elementos junto com os da pandemia e não arroubos revogatórios que devem nos informar na leitura atenta do Decreto argentino nº 389, de 16 de junho de 2021 que dá nova redação ao artigo 4 e os apenas derrogados artigos 6, 8, 9, 10 e 11 do Decreto nº 882, de 31 de outubro de 2017, reposicionando a política anterior pró-mercado dos ativos energéticos agora considerados estratégicos.
O novo decreto retoma a regulamentação e a
política iniciada em 2005 com Néstor Kirchner (1950-2010) com o Fundo de
Investimento no Mercado Atacadista de Energia Elétrica (FONINVEMEM), que busca
uma articulação de ações com o setor privado. O FONINVEMEM
estabeleceu que as dívidas que o Estado tinha com os entes privados seriam
saldadas mediante a cobrança futura dos valores obtidos com a geração de
energia elétrica mais suja carbonácea das usinas termoelétricas Manuel Belgrano
e José de San Martín e que seriam construídas com o remanejamento do orçamento
das dívidas e novos aportes do Estado. Ao reposicionar as dívidas, essas usinas
seriam transferidas para o patrimônio do Estado. Havia uma projeção de que a
demanda por energia estaria em ascensão ao considerar a economia em constante
crescimento, diferente do que acabou por gerar a crise de governo.
O Decreto 389/2021 de igual forma recupera
a área exploratória no oceano atlântico sul argentino (óleo e gás, energia mais
suja pois carbonácea) localizada na bacia das Malvinas onde, através da
Integración Energética Argentina S.A. (IEASA), onde o Estado durante os anos
2014 e 2015 fez investimentos em estudos técnicos de 50 milhões de dólares.
Apesar de contar com um programa de perfuração exploratório, em 2017 a área
ficou a cargo do Estado junto com todos os estudos sísmicos, técnicos,
econômicos e financeiros que a IEASA tinha desenvolvido com enorme esforço
próprio.
O novo decreto revaloriza esse projeto para
que, além de retomar e dar sequência ao FONINVEMEM, se redefine por força da
pandemia a presença do Estado argentino com a IEASA na bacia das Malvinas a
poucos quilômetros das ilhas da discórdia.
Sob vários aspectos, a Argentina está
redirecionando os destinos da IEASA segundo as diretrizes e promessas propostas
no ano de sua criação, em 2004. Uma empresa
energética estratégica. Vetor de desenvolvimento energético com inclusão
social. O estado atual do setor onde se busca resolver a equação energética e
se define o desenvolvimento planetário e produtivo da República Argentina,
sempre em colaboração com os demais atores para que a equação inclua a todos.
Contando com a lucidez a IEASA e o Estado
sabem que não farão essa mudança de rumos sozinhos, pois é necessário contar
com o acompanhamento inabalável da república e da democracia que reconhecem na
IEASA o valor do esforço, dedicação e perseverança exigidos pelas suas equipes
para cumprir os objetivos traçados. A partir da pandemia, o Estado argentino
mais uma vez se reposiciona como ator dentro do setor de energia.
Mas onde está a beleza literária nisso
tudo? É que Nossa parte de noite (dezembro de 2019 lá e 2021 aqui pela
Intrínseca) romance da Mariana Enríquez mostra que as crises também existem
para fazer com que aqueles que souberem decifrar seus sinais como o pai Gaspar
(não seria ele um Gasparzinho?) possam crescer e aprender com os erros, e até
mesmo tornar visível a escuridão para que o seu filho Juan não seja tragado por
ela. E esse episódio literário energético nos ajuda a entender o que está
acontecendo conosco e nos conecta com certas partes que queríamos cobrir, mas
que a bandeira vermelha tarifária nos patamares 1 e 2 não nos deixam calar.
Rio de Janeiro, 10 de janeiro de 2022
*Professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.
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