quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

O que pensa a mídia: Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Bolsonaro nada faz contra mais um onda da covid-19

Valor Econômico

Nenhum poder da República se mostrou capaz de fazer Bolsonaro cumprir as determinações constitucionais que exigem a proteção ao direito à vida e à saúde dos brasileiros

A quinta variante da covid-19, a ômicron, é a recordista em propagação e em furar o bloqueio das vacinas. Três milhões de pessoas foram infectadas por dia no mundo, um recorde até agora, e a curva de casos no Brasil, onde a ômicron já é predominante, apontou para cima de novo. A experiência acumulada na pandemia é suficiente para enfrentar um vírus de menor taxa de letalidade, mas não para deter a nova corrida aos hospitais e postos de saúde que, por sua vez, começam a ficar gravemente desfalcados pela contaminação de médicos, enfermeiros e pessoal de apoio. Já o presidente Jair Bolsonaro, 620 mil mortes depois, segue preocupado com seus fantasmas particulares - até mesmo uma farsesca supernotificação de casos de covid-19 - enquanto o Ministério da Saúde vive apagão de dados há um mês.

A nova onda da covid-19 pode ser um problema eleitoral para Bolsonaro - que só pensa nisso. A primeira reação do presidente, no entanto, não é tomar providências e enfrentar da melhor maneira possível o vírus, mas criticar as soluções disponíveis, que mostraram eficácia. Foi assim desde o começo, quando a “gripezinha” vislumbrada pelo presidente se transformou em uma hecatombe, com o país exibindo o segundo maior número de mortes do mundo. Mas as mortes, o desenvolvimento de vacinas em tempo recorde e o enorme e dedicado esforço das redes públicas e privadas de saúde nada significaram para Bolsonaro, que se supera em demonstrar quanto sua ignorância pode ser destrutiva.

Quanto mais os problemas se avolumam e, com eles, a possibilidade dele ser ejetado da Presidência em outubro, mais Bolsonaro se agita em ataques paranóicos. Em entrevista à Jovem Pan, advertiu que “já vejo ensaio de governadores querendo fechar tudo novamente”, provavelmente em alusão às medidas preventivas necessárias contra aglomerações no carnaval que começam a ser tomadas. O presidente disse que se isso ocorrer haverá uma “rebelião”, sem que haja “Forças Armadas suficientes para a garantia da ordem”.

Os meios recomendados pela expertise médica do presidente - o nefasto kit covid - foram desacreditados pela ciência. O que Bolsonaro sugere agora? Nada, fora a imunidade de rebanho que sempre pregou. “Eu desconheço uma autoridade que tenha adotado a minha linha. Será que eu sou o único certo? Será que eu sou a pessoa que andou falando absurdos? A realidade vai caindo”, disse na entrevista. Os recuos sucessivos na confiança e intenção de voto nas pesquisas, apontam que a realidade de fato desaba, mas sobre a cabeça do presidente.

Bolsonaro ontem voltou à sua cantilena e disse que a ômicron é “bem-vinda” por ser de baixa letalidade e sinalizar o fim da pandemia, aparentemente mimetizando declarações de cientistas sérios, que dizem algo diferente e circunstanciado. Em primeiro lugar, embora a ômicron drible vacinas, os vacinados são os que se saem melhor da infecção. A diferença entre o imunizado e o não vacinado é “brutal”, segundo a cardiologista Ludhmila Hajjar, desconvidada pelo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, a ocupar um posto avançado no combate à pandemia por seu espírito crítico à charlatanice bolsonarista. “As UTIs estão atualmente só com casos de Covid entre os não vacinados”, disse a “O Globo” (ontem). “Os imunizados dificilmente passam do atendimento ambulatorial”.

Ontem o presidente recomendou a Queiroga a divulgação de casos de efeitos colaterais das vacinas. Voltou também a desdenhar a vacinação de crianças de 5 a 11 anos, tema de sua investida calhorda contra a Anvisa, sugerindo interesses escusos em favor da imunização infantil. Antonio Barra Torres, diretor-presidente da agência, exigiu em comunicado que o presidente apresentasse provas de corrupção ou se retratasse.

Bem no seu estilo, Bolsonaro manteve o que insinuou. “Não quero acusar a Anvisa de absolutamente nada. Agora, que tem alguma coisa acontecendo, não tem a menor dúvida que tem”, afirmou. Houve corrupção de fato, mas na Saúde, quando um governo visceralmente contra vacinas abrigou esquemas de propinas para sua obtenção. Bolsonaro soube disso por um deputado e nada teria feito. E é acusado de prevaricação em processo sugerido pela CPI da Covid.

Há tempos o presidente representa um risco à saúde pública, mas nenhum poder da República se mostrou capaz de fazê-lo cumprir as determinações constitucionais que exigem a proteção ao direito à vida e à saúde dos brasileiros.

Apagão de dados no SUS dificulta combate à Covid

O Globo

Quem entrava ontem no portal Coronavírus Brasil, do Ministério da Saúde, deparava com a informação de que o país tem 616.691 mortes por Covid-19 e 22.184.824 casos confirmados da doença. No canto superior esquerdo da página está o único dado que presta: atualizado em 9/12/2021. Os números que traçam um panorama da epidemia datam de mais de um mês atrás, anteriores ao ataque que afetou o banco de dados do Sistema Único de Saúde (SUS) num momento de ascensão da supercontagiosa variante Ômicron. De acordo com o consórcio de veículos de imprensa junto às secretarias de saúde, o Brasil já tinha ontem 620.419 mortes e 22.718.606 casos confirmados.

Mesmo esses números não são precisos, devido às inconsistências nos sistemas do Ministério da Saúde e à dificuldade das secretarias estaduais e municipais para registrar dados. É evidente o aumento de casos de síndrome respiratória entre o fim do ano passado e o início de 2022. As cenas de unidades básicas de saúde lotadas não deixam dúvidas. Mas caminha-se às cegas quando mais se precisa de informação. Não se sabe quanto do aumento deve ser atribuído a problemas causados pelo apagão de dados, quanto ao crescimento real.

O Ministério da Saúde alega que a maior parte de seus sistemas já foi restabelecida, mas na prática não é o que se observa. Pesquisadores têm encontrado dificuldades para obter dados atualizados nas plataformas do ministério, com impacto direto no acompanhamento da Covid-19, de outras doenças e, obviamente, na formulação de políticas públicas. Às vésperas de começar a vacinação em crianças de 5 a 11 anos, não se conhece o impacto da Ômicron nesse grupo etário. Nem os dados sobre vacinação escapam ao apagão, já que há estados que não têm informado os números.

“Felizmente, a gente está tendo algum nível de informação que vem do relato de aumentos da demanda, mas não se faz análise de saúde com base em relatos, e sim em ciência. Dados brutos que nos permitiriam fazer análises sistemáticas, a gente não tem”, afirma Marcelo Gomes, pesquisador em saúde pública e coordenador do Infogripe, da Fiocruz.

A incrível capacidade de transmissão da Ômicron já começa a desfalcar as equipes das unidades de saúde e noutros setores da economia. Em São Paulo, o total de profissionais da rede pública afastados por Covid-19 quase triplicou em um mês. Em Fortaleza, entre novembro e dezembro, o número de afastamentos aumentou 419%. Na cidade do Rio, estima-se que o déficit esteja em torno de 20%. Em entrevista ao GLOBO, a médica Ludhmila Hajjar, intensivista e cardiologista do Hospital das Clínicas, em São Paulo, disse que a situação levará o sistema de saúde ao colapso.

Forma-se uma tempestade perfeita diante da inépcia do Ministério da Saúde durante a mais letal pandemia em cem anos. Uma variante altamente contagiosa, disparada de casos de Covid-19, falta de profissionais de saúde para atender à crescente demanda, baixa testagem e um apagão de dados que não permite saber o que está acontecendo. Sem informação, não há planejamento. Sem planejamento, o resultado é o caos que se instala nas unidades de saúde e o risco de colapso. O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, deveria agir para evitá-lo.

Caso de deputado mineiro expõe danos das emendas do relator

O Globo

O caso do deputado federal Aelton Freitas (PL-MG) é mais que um exemplo pitoresco, entre tantos outros, de suspeitas de desvio de verbas públicas para fins particulares. Ele expõe de modo cristalino as duas características mais nefastas das emendas do relator, o mecanismo do orçamento secreto com que o governo tem comprado apoio no Congresso.

De acordo com reportagem do GLOBO, Freitas destinou R$ 21 milhões da emenda de relator a que tinha direito em 2021 a obras no município mineiro de Iturama, onde o prefeito é seu primo Cláudio Tomaz de Freitas. O dinheiro deveria ser usado em “pavimentação”, “adequação de vias” e numa “ponte”. As obras serviriam também para permitir escoar água da chuva de um loteamento e de uma chácara da família de Freitas, além de facilitar o acesso ao local.

Fica evidente o primeiro dano: como a distribuição da verba não é transparente e passa ao largo dos órgãos de fiscalização, abre a porta ao patrimonialismo e à corrupção tão comuns no Brasil. Não se sabe se há maracutaia nesse caso específico, mas ele já foi encaminhado à Procuradoria-Geral da República (PGR) para investigação. A PGR tem obviamente o dever de levá-la adiante para dissipar as suspeitas.

Mas isso não basta para eliminar o segundo dano: destinar recursos segundo critérios idiossincráticos, sem conexão com as necessidades da maioria. O que é mais importante para o Brasil? Construir a ponte em Iturama ou ter recursos para obras de infraestrutura paralisadas? Drenar as terras do primo do deputado ou dispor de dinheiro para monitorar o estrago das chuvas no país? Para não falar no ensino remoto nas escolas públicas e noutras carências expostas pela pandemia.

Pode-se argumentar que R$ 21 milhões é pouco dinheiro. Mas esse é só um caso. Quando se somam todos os deputados e senadores, é escandalosa a verba alocada sem critério técnico, com base em interesses políticos ou paroquiais. Só na peça orçamentária deste ano, há R$ 16,5 bilhões reservados a emendas do relator, o equivalente à metade do que o governo gastava no ano todo com o programa Bolsa Família. Fora os R$ 18,5 bilhões já destinados a emendas individuais e de bancada, pelo menos distribuídos segundo critérios equânimes e transparentes.

Perto de 95% do Orçamento da União já é engessado por despesas obrigatórias em salários, aposentadorias, fundos setoriais e outros quinhões apropriados por interesses nem sempre republicanos. Quando o pouco que resta fica sujeito aos rapapés a caciques do Centrão, tem-se ideia do motivo de faltar dinheiro para tudo o que importa, em particular os programas sociais.

Ao decidir sobre as emendas do relator, o Supremo Tribunal Federal (STF) limitou-se a exigir mais transparência. Não basta. A falta de transparência é apenas um dos males. Outro — mais insidioso — é a má alocação de verbas já escassas. Para que o Orçamento recupere um mínimo de aderência à necessidade do país, as emendas do relator precisam ser extintas. Do contrário, as Ituramas continuarão a ser mais importantes que o Brasil.

Muito dinheiro para os ‘bem atendidos’

O Estado de S. Paulo.

Parlamentares são ‘bem atendidos’ por Bolsonaro para que ele siga no cargo fingindo que governa o País sem ser incomodado

A entrevista que o presidente Jair Bolsonaro concedeu à Rádio Jovem Pan na terçafeira passada serviu para, mais uma vez, evidenciar o seu despudor em afrontar os princípios republicanos mais comezinhos e indicar uma das razões, talvez a principal, pelas quais alguém tão despreparado como ele – administrativa, intelectual e moralmente – siga inabalável no exercício da Presidência da República, a despeito de todos os crimes de responsabilidade que cometeu, descritos em mais de uma centena de pedidos de impeachment, e de todos os males que vem infligindo ao País desde que tomou posse.

Sob seu governo, avaliou Bolsonaro, o Congresso está “muito bem atendido”. Primeiro, é preciso reconhecer que o presidente não mentiu. Aí está o volume recorde de liberação de emendas parlamentares ao longo desses três anos de mandato a comprovar a afirmação, especialmente as emendas do relator-geral do Orçamento, tecnicamente conhecidas como RP-9. No entanto, é preciso deixar claro o que Bolsonaro entende por “muito bem atendido” e, principalmente, em que bases se dá esse “atendimento”.

“Hoje em dia, todos estão ganhando”, afirmou o presidente à rádio, em referência aos deputados e senadores. “Além das emendas impositivas, por volta de R$ 15 bilhões por ano, tem uma outra forma de conseguir recurso, que é a RP-9. E só em RP-9”, prosseguiu Bolsonaro, sem manifestar qualquer sinal de constrangimento, “os parlamentares têm quase o triplo de recursos do Ministério da Infraestrutura, do (ministro) Tarcísio (Gomes de Freitas). Então, o Parlamento está muito bem atendido conosco.”

É muito dinheiro, mas não é verdade que “todos estão ganhando”. A liberação de emendas RP-9 contempla primordialmente os parlamentares que compõem a base de apoio ao presidente no Congresso, como revelou o Estado em uma série de reportagens que, desde maio do ano passado, tornaram público o chamado “orçamento secreto”. A distribuição dessa bilionária soma de recursos públicos por meio de emendas RP-9 é feita sem levar em consideração critérios técnicos, sem transparência e, sobretudo, sem equidade entre os congressistas. Na prática, o governo dividiu os parlamentares em dois grupos: os de “primeira classe”, que apoiam o governo, e o resto.

Em português cristalino, “orçamento secreto” é compra de votos no Congresso. Não sem razão, a prática espúria “estarreceu” ministros do Tribunal de Contas da União (TCU) e levou a ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal (STF), a suspender, em um primeiro momento, o pagamento das emendas RP-9, classificadas por ela como um instrumento que “se distancia dos ideais republicanos” e que é operado “sob o signo do mistério”. Contudo, pouco tempo após manifestar “perplexidade” diante do pagamento das emendas RP-9, a ministra liberou a execução dos repasses a pedido dos presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Ambos prometeram à ministra dar transparência aos acordos que viabilizam o pagamento das emendas, como se não estivessem obrigados pela Constituição a fazê-lo. Mas, até agora, não honraram a palavra empenhada.

A entrevista de Bolsonaro foi uma aula de desfaçatez. Mas ele não está sozinho na subversão dos “ideais republicanos” mencionados pela ministra Rosa Weber. Há neste Congresso “muito bem atendido” quem se disponha a se apropriar de recursos do Orçamento para satisfazer interesses eleitorais ou financeiros muito particulares. Não se sabe quais exatamente por não haver transparência em relação às transações. Se são legais e republicanas, por que o sigilo? A dúvida singela, não respondida até hoje, abre espaço para dúvidas muito razoáveis sobre a higidez de todo o processo que cerca as emendas de relator-geral.

Malgrado ser o presidente que mais liberou emendas parlamentares desde 2003, Bolsonaro foi o que menos conseguiu aprovar projetos de sua iniciativa no Congresso. É evidente que o “atendimento” prestado por Bolsonaro a um grupo de parlamentares – e não ao Congresso – se presta, fundamentalmente, a garantir sua sustentação política no cargo para que ele siga fingindo que governa o Brasil sem ser incomodado.

O BC e a inflação fora dos limites

O Estado de S. Paulo.

Incertezas sobre contas públicas e seus efeitos sobre o dólar são citados mais claramente que em outras manifestações do Copom

Pandemia, desarranjos na economia global e seca no Brasil explicam a maior parte da inflação de 2021, segundo o presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto. A explicação aparece em carta de 15 páginas enviada ao ministro da Economia, Paulo Guedes, presidente do Conselho Monetário Nacional (CMN).

Cartas desse tipo são obrigatórias quando o aumento de preços ao consumidor fica fora do espaço de tolerância. A alta de preços em 2021 chegou a 10,06%. O centro da meta era 3,75%. O teto, 5,25%. Neste século, só o estouro de 2002, de 7,03 pontos porcentuais, foi maior que o do ano passado, de 4,81 pontos. Faltou explicar, entre outros pontos, por que os dirigentes do BC demoraram a admitir a real gravidade da inflação.

Vários bancos centrais, incluído o americano, mantiveram por muito tempo a aposta em um breve surto inflacionário. O BC brasileiro participou dessa onda. Seu Comitê de Política Monetária (Copom) apontou em junho uma pressão mais persistente do que se esperava, mas em seguida amaciou a linguagem. O ajuste dos juros básicos para 4,25% era necessário, segundo comunicado emitido no dia 16, “para mitigar a disseminação” de “choques temporários sobre a inflação”. A mudança do jogo foi claramente explicitada na reunião de setembro, quando a taxa básica foi elevada a 6,25%. A partir daí, o aperto monetário, admitido sem restrição, deveria avançar “em território contracionista”.

Nessa altura, o Copom projetava inflação em torno de 8,5% para 2021, 3,7% para 2022 e 3,2% para 2023. Os três números estavam acima das metas e o primeiro já superava com folga o limite de tolerância. Estava amplamente evidenciado o atraso do BC em admitir a persistência e a gravidade das pressões inflacionárias. Mas esse detalhe ficou quase oculto na carta de explicação, embora o texto mencione “surpresas altistas nos dados de inflação” já nos meses finais de 2020.

Também nos Estados Unidos a política monetária se manteve permissiva por muito tempo, abrindo espaço a uma inflação de 7% em 2021. Foi a maior taxa em 12 meses desde junho de 1982, quando atingiu 7,6%. No mercado americano, no entanto, a política frouxa foi em parte compensada por uma ampla criação de empregos, mesmo com a atividade fraquejando no final de 2021. No Brasil, o surto inflacionário do ano passado resultou principalmente em maiores dificuldades para famílias atormentadas por uma severa escassez de oportunidades de trabalho, no quadro de uma economia muito debilitada. Pelas últimas estimativas do mercado, o Produto Interno Bruto (PIB) deve ter crescido cerca de 4,5% no ano passado, mal compensando a queda ocorrida em 2020.

A carta destaca os efeitos dos preços internacionais, inflados pela maior demanda em 2021 e por desarranjos nas cadeias de suprimentos. Parte importante da inflação brasileira veio do exterior e foi amplificada pela desvalorização do real. O texto também realça as consequências da seca e o encarecimento da eletricidade, citando os aumentos associados a diferentes bandeiras tarifárias. Além disso, lembra como a redução do distanciamento social afetou a demanda e os preços de serviços.

Menos comum que esses dados, em documentos do BC, é a referência às oscilações cambiais ocasionadas por incertezas sobre as contas públicas. O exame do assunto, na carta, é mais aberto que nos comunicados do Copom, muito contidos em relação a esses problemas. Na carta, a valorização do dólar é vinculada mais claramente às incertezas sobre o arcabouço fiscal e o endividamento público. Não se associa o nome do presidente Jair Bolsonaro a essa insegurança, mas o vínculo é evidente. Na questão cambial, assinala o texto, há o rompimento de um padrão histórico: diante do aumento de preço das commodities exportadas pelo Brasil, o real tenderia a valorizarse, seguindo um curso oposto ao observado no último ano e meio. O rompimento é explicável, como sabe qualquer cidadão passavelmente informado, pelos desmandos cometidos a partir do gabinete principal do Palácio do Planalto.

Além da conta

Folha de S. Paulo

Fenômeno global, disparada da inflação no Brasil foi agravada pela gestão de Bolsonaro na economia

A inflação ao consumidor terminou o ano passado em 10,06%, a maior variação desde 2015 e uma das mais altas da série histórica a partir do advento do sistema de metas para a inflação, em 1999.

É fato que o problema da alta acelerada dos preços se mostra global —nos Estados Unidos o índice comparável subiu 7%, em face principalmente de choques setoriais ocasionados pela pandemia.

Mas no Brasil a má gestão do Executivo, na saúde e na economia, impôs desnecessário peso sobre a população mais vulnerável. O perfil da alta dos preços foi especialmente cruel, com destaque para o encarecimento de produtos de primeira necessidade, como alimentos, energia e gasolina. Em 2021, esses três itens subiram 8,2%, 21,2% e 47,5%, respectivamente.

De outro lado, a inflação de serviços, notadamente os prestados pela mão de obra informal e menos especializada, foi menor (4,75%). Na prática houve uma grande perda de renda disponível para os mais pobres, agravada pelo desemprego.

As cenas de fome nas cidades e o crescimento da miséria —em julho de 2021 cerca de 13% da população vivia com renda domiciliar per capita abaixo de R$ 261 mensais, o maior percentual em uma década— expõem o drama social.

Embora, segundo estimativas do Banco Central, quase 70% da inflação de 2021 possa ser atribuída a fatores externos —alta das matérias-primas e variação do câmbio—, a desconfiança quanto à política econômica amplificou a pressão.

Num ano em que os preços de itens exportados pelo país, caso de minério de ferro e soja, dispararam no mercado internacional, seria esperado que o dólar caísse. Não foi o que ocorreu, sobretudo depois que o governo burlou os limites de gastos públicos para bancar a agenda eleitoral do presidente Jair Bolsonaro (PL).

O resultado foi a disparada do câmbio e das expectativas de inflação, o que obrigou o BC a ampliar o choque dos juros, que já chegam a 9,25% e atingirão dois dígitos em janeiro. Não por acaso as projeções de crescimento para 2022 caem continuamente.

O combate à inflação ocupa os principais bancos centrais do mundo. No caso dos EUA, o Federal Reserve já indicou que subirá a taxa básica com mais rapidez e retirará liquidez dos mercados. Mesmo assim, a política monetária permanece favorável ao crescimento e espera-se convergência às metas.

No Brasil, além das dificuldades de sempre, como a indexação que alonga o impacto do choque de preços, é mais difícil obter essa convergência quando há incerteza em relação à responsabilidade fiscal. O custo social é bem maior que alhures. Essa parte da conta pode ser atribuída a Bolsonaro.

República de bacharéis

Folha de S. Paulo

Maioria das faculdades de direito aprova menos de um terço dos alunos em exame da OAB

De todos os descompassos da educação superior brasileira, a oferta desenfreada de cursos de direito de má qualidade pelo país talvez seja o mais preocupante.

A carreira de maior demanda nacional coloca no mercado anualmente milhares de bacharéis que não conseguirão exercer advocacia porque não passam pelo crivo do exame da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).

Reportagem desta Folha mostrou que a imensa maioria das instituições que oferecem o curso de direito aprova menos de um terço dos seus alunos no exame da ordem. Sem ele, forma-se uma massa de bacharéis com atuação limitada.

Os dados consideram o total de aprovados em relação ao número de presentes em exame da OAB por faculdade (em uma soma de três provas por ano realizadas em 2017, 2018 e 2019).

Entraram na conta 790 instituições de ensino superior que ofertam direito. Dessas, nove em cada dez escolas são particulares.

Essas instituições observaram crescimento importante em número de alunos com políticas de inclusão recentes focadas no ensino superior privado para o aumento da oferta da educação terciária. Caso do Prouni (Programa Universidade para Todos) e do Fies (Fundo de Financiamento Estudantil).
Problema é que tais políticas se deram desacompanhadas de avaliações periódicas de qualidade dos cursos contemplados.

Sabe-se que o exame da ordem —considerado demasiado conteudista por especialistas da área— é passível de críticas. O entendimento, no entanto, é que cursos bons têm boas aprovações na prova. Entre os melhores cursos, há coincidências como a oferta da grade em período integral.

Líderes no país, a FGV Direito Rio, com 79,33% de aprovados na OAB, e a USP (73,64%), oferecem formação com aulas integrais. São, no entanto, exceções. Barato, o curso de direito costuma ser oferecido com poucas aulas em lousa e giz.

É a segunda vez que a Folha faz análise desse tipo. Em 2019, no âmbito do Ranking Universitário Folha (RUF), os dados mostraram que 6% das escolas avaliadas conseguiram aprovação na OAB acima de metade de seus alunos. Agora, há piora no cenário, para 5%.

Se o MEC não atuar para descredenciar instituições incapazes de oferecer boa formação na área jurídica, há o risco de os números piorarem numa próxima avaliação.

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