O Estado de S. Paulo.
Nunca a ausência física do explorado foi
uma solução tão lucrativa. O pobre ‘usuário’ é ao mesmo tempo mão de obra e
matéria-prima
No dia 3 de janeiro, a Apple se tornou a
primeira empresa da história a alcançar o preço de US$ 3 trilhões. A cifra
equivale, em números aproximados, ao dobro do PIB brasileiro. É dinheiro – e é
dinheiro que não para de crescer. Em um intervalo de 16 meses, o valor da Apple
subiu 50%, passando de US$ 2 trilhões para US$ 3 trilhões. A escalada não deixa
mais dúvidas sobre o fato de que o centro do capitalismo está nas chamadas big
techs, as gigantes de alta tecnologia que têm uma incomparável capacidade de
inovação.
Em julho do ano passado, as cinco maiores
big techs (Apple, Google, Amazon, Microsoft e Facebook, que foi renomeada
recentemente como Meta) bateram, juntas, o preço de US$ 9,3 trilhões. Agora,
valem mais.
Durante a pandemia, com as medidas sanitárias de isolamento, as cinco foram às alturas. Eram as companhias mais preparadas para lucrar com o que se começou a chamar de “trabalho remoto”, e também com o e-commerce, com o e-governe com o home office. Suas ferramentas se tornaram imprescindíveis.
Em abril de 2020, havia 4,5 bilhões de
habitantes do planeta, em 110 países, vivendo (ou tentando sobreviver) em
regime de lockdown. Entrávamos numa era de virtualidades que não conhecíamos:
escolas, mesmo as recalcitrantes, tiveram de se render ao expediente das aulas
a distância; escritórios de advocacia de qualquer lugarejo adotaram o home
office; serviços públicos começaram a ser oferecidos online e os movimentos da
sociedade civil se canalizaram para as plataformas digitais – e tome abaixo-assinados
eletrônicos.
Começava ali um período estranho, com
trabalhadores trabalhando sem comparecer ao local de trabalho, cidadãos
exercendo seus direitos sem estar lá, missas pelo Youtube e namoros pelo
Whatsapp. A economia se adaptou muito bem, obrigado. Não veio catástrofe
nenhuma nos ditos “mercados”. O que veio, isto sim, foi mais acumulação, mais
concentração e mais crescimento do valor e do poder das big techs, que se
firmaram como estrelas no capitalismo da ausência.
Estamos vivendo uma mutação social das mais
intrigantes. Na Revolução Industrial do século XIX, falava-se em “força de
trabalho”. Era essa “força” que o operariado vendia nas linhas de montagem. A
“força de trabalho” era uma energia física que tinha como combustível o sangue
humano. Com ela, os proletários moviam engrenagens, enroscavam parafusos,
empurravam carcaças, pacotes e carrinhos abarrotados de carvão. Hoje, a velha
“força de trabalho” parece ter ficado de escanteio. O capital não liga mais
para ela, ou, ao menos, não liga tanto. Máquinas robotizadas fazem o serviço,
colhem a cana, soldam peças na fuselagem dos automóveis, operam os
telemarketings da vida e da morte.
Agora, o interesse do capital tem foco em
outros atributos da gente. Não requisita mais a força física, mas o olhar, a
imaginação, a atenção, o desejo. Esses atributos já não têm tanto a ver com o
corpo, com os músculos e com o esqueleto que nos sustenta, mas com a máquina
psíquica. O capitalismo da ausência – com as big techs na vanguarda –
desenvolveu fórmulas para explorar as nossas mais recônditas fantasias. Eis
porque, com as multidões confinadas, a economia não parou.
O modo de produção em que estamos
embarcados consegue extrair valor – a distância – de corpos em estado
semivegetativo, prostrados atrás de uma tela eletrônica. Só o que é convocado a
entrar em atividade, nos corpos dormentes, é o olhar e as pontas dos dedos. O
capitalismo se higienizou. Nunca a ausência física do explorado foi uma solução
tão lucrativa.
Mas o grande trunfo das big techs não está
no home office, que, aliás, já virou carne de vaca (ou, no caso brasileiro,
virou osso de vaca). Hoje, todo mundo diz que trabalha remotamente, inclusive
quem não trabalha. O maior diferencial dos grandes conglomerados, como Apple e
suas assemelhadas, todas monopolistas globais em seus ramos (ou troncos) de
atuação, foi a transformação do consumo em trabalho. No modelo de negócio das
gigantes da tecnologia, consumir é trabalhar.
O tal do “usuário”, enquanto pensa usufruir
de funcionalidades gratuitas, enquanto imagina se divertir, está trabalhando de
graça. É o “usuário” quem “posta” os “conteúdos”, é o “usuário” que, sem saber,
fornece de graça todos os seus dados pessoais (que depois serão vendidos a peso
de ouro para os anunciantes), é o “usuário” que, com seu olhar, também
gratuito, costura as significações e assimila os conteúdos das marcas e das
mercadorias. O pobre “usuário” é ao mesmo tempo a mão de obra e a matéria-prima
que saem de graça. Depois, no fim da linha, é ele, o “usuário”, que vai ser
comercializado. A isso se resume o melhor negócio de toda a história da
humanidade.
Se você quiser, pode tentar ser otimista.
Pode falar dos prodígios curativos da telemedicina e do conforto de jogar na
Mega-sena sem sair de casa. Nada contra. Apenas leve em conta que a sua
ausência vem preenchendo grandes lacunas, quer dizer, vem abarrotando de
dinheiro virtual muitas burras digitais.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
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