Cristina Tardáguila
RIO - O mineiro Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) fez poesia e prosa. Escreveu sonetos e aforismos. Arriscou-se nos poemas-piadas e se glorificou nas crônicas jornalísticas. Rabiscou aquilo que via - e aquilo que imaginava também. Semeou o modernismo na Semana de Arte de 1922 e, anos mais tarde, lutou pelo surgimento do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Sabia o valor da memória e sentia necessidade de preservá-la. Drummond povoou seus textos com assuntos que vão do político e notório ao mais íntimo e pessoal. Falou de guerras e amores, de pequenas cidades e grandes metrópoles, de amigos perdidos e inimigos conquistados. Tímido, fez confissões eróticas e cuspiu fogo. Sempre com palavras, sem nunca perder a elegância. Por isso - e por muito mais - ele ganha na próxima segunda-feira uma data para ser só sua. No que depender de seus admiradores, a partir deste ano, o 31 de outubro (quando se comemora seu nascimento) passa a ser o Dia D, só de Drummond, e será sempre recheado de eventos em torno de sua obra - algo como acontece na Irlanda com o Bloomsday, dedicado ao escritor James Joyce (1882-1941).
- Resolvemos impulsionar isso porque não há em toda a literatura brasileira alguém que tenha experimentado tanto quanto Drummond. Não houve aventura poética, seja no que diz respeito ao estético, ao existencial ou ao linguístico, que Drummond não tenha topado - enfatiza, em tom declaradamente apaixonado, o poeta Eucanaã Ferraz, idealizador da homenagem que está sendo impulsionada pelo Instituto Moreira Salles (IMS). - Drummond aprendeu com autores importantíssimos, gente como Manuel Bandeira e Mario de Andrade, e, depois, serviu de ponto de partida para outros poetas importantíssimos, como João Cabral de Melo Neto e Ferreira Gullar. Virou figura central e é, sem dúvida, "o" poeta brasileiro.
Seguindo uma das máximas de Eucanaã, a de que "há um Drummond para todo mundo", o GLOBO foi atrás do acervo pessoal e de algumas histórias familiares do poeta, que será o homenageado da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) no ano que vem. E apresenta agora suas principais facetas: o Drummond jornalista, o arquivista, o erótico, o político, o desenhista e até mesmo o protetor dos animais.
Fonte: O Globo
A um ausente:: Carlos Drummond de Andrade
Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.
Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enlouqueceu,
enlouquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?
Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.
Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste.
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