Nas últimas semanas, vieram a público dois conjuntos de dados que, quando combinados, revelam com contundente nitidez o que há de mais preocupante nos dois lados do problemático quadro fiscal brasileiro.
De um lado, há dados atualizados sobre o espetacular desempenho da arrecadação. Nos nove primeiros meses deste ano, a receita federal mostrou aumento de nada menos que 12,9% acima da inflação. O governo apressou-se a esclarecer que, até o final do ano, essa taxa deve recuar para "apenas" 11,5%, ou seja, bem mais do triplo da provável taxa de crescimento do PIB em 2010.
Nos governos subnacionais, a arrecadação também vai de vento em popa. Especialmente nos municípios das capitais. Em vários deles, a receita própria vem tendo crescimento quase equivalente ao que se vê na esfera federal. A disseminação da nota fiscal eletrônica explica parte substancial do bom desempenho da arrecadação dos três níveis de governo, mas é na esfera municipal, na cobrança do imposto sobre serviços, que os ganhos se têm mostrado particularmente importantes.
Esforços de modernização da máquina arrecadadora e de redução da sonegação são mais do que bem-vindos. O ideal, contudo, seria que os ganhos de arrecadação propiciados por tais esforços dessem lugar a reduções de alíquotas. Mas quem acredita nisso? Mantidas as alíquotas (e até elevadas, em certos casos), o que agora se assiste é a mais um brutal aumento de carga tributária. Um salto da ordem de 1,8 a 2 pontos percentuais do PIB em um único ano! É o que se infere de uma conta simples com valores razoáveis para as taxas de crescimento do PIB e da arrecadação dos três níveis de governo em 2011. Tal salto apenas realça de forma nítida e inequívoca a necessidade de elevação sem-fim da carga tributária que é intrínseca ao atual regime fiscal brasileiro.
Mas há também outro lado a se ter em conta. Uma carga tributária de 35% do PIB, numa economia do tamanho da brasileira, implica extração fiscal pelos três níveis de governo de cerca R$1,4 trilhão por ano. Para entender os descaminhos do regime fiscal brasileiro, é certamente importante analisar que destino vem tendo montante tão vasto de recursos. Mais importante, contudo, talvez seja perceber com clareza a extensão da inexplicável carência de recursos que ainda persiste em áreas nas quais a atuação do Estado é indiscutivelmente essencial. Muito poderia ser dito sobre educação, saúde e segurança pública. Mas, tendo em conta a complexidade da análise da alocação de recursos públicos nessas áreas, mais vale aqui centrar a atenção em outra área na qual a atuação competente do Estado há muito se tornou imprescindível: saneamento básico.
Acabam de ser publicados pelo IBGE dois excelentes relatórios: Pesquisa nacional de saneamento básico 2008 e Atlas de saneamento 2011. O que emerge dessas duas publicações é um retrato vergonhoso da irracionalidade da alocação de recursos públicos no Brasil. Em 2008, apenas 44% dos domicílios do país tinham acesso à rede geral de esgoto. Em 18 das 27 unidades da Federação, menos de 25% dos domicílios estavam atendidos pela rede geral de esgoto. Em seis outras - Rio de Janeiro, inclusive -, o atendimento não alcançava metade dos domicílios. Níveis de atendimento mais razoáveis estavam restritos ao Distrito Federal (86,3%), São Paulo (82,1%) e Minas Gerais (68,9%). Cerca de 45% dos 5.564 municípios existentes em 2008 simplesmente não contavam com qualquer tipo de rede coletora de esgoto.
Nesse quadro, é difícil pensar em gasto público tão prioritário quanto investimento em saneamento. No entanto, o esforço total de investimento nessa área no país em 2010 mal deve chegar a R$7,5 bilhões. A parcela pública desse esforço corresponde a bem menos de meio por cento da extração fiscal. O governo tem outras prioridades. Basta ter em conta os quase R$300 bilhões que o Tesouro transferiu ao BNDES desde 2008, para bancar financiamentos subsidiados a grandes empresas, ou os R$70 bilhões de capitalização da Petrobrás no ano passado.
Pobre país.
Rogério Furquim Werneck é professor de Economia da PUC-Rio.
Fonte: O Globo
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