Alamiro Velludo Salvador Netto
Na literatura teatral divide-se a narrativa da peça em atos e cenas. Os atos
consistiriam num conjunto sucessivo de cenas, reunidas em razão de um mesmo
tema ou subdivisão temática. As cenas, como elementares atomizadas do enredo,
seriam definidas em face do número de atores que as compõem. O entra e sai de
personagens perfazem, portanto, as cenas que, uma vez reunidas, compõem o ato.
A soma de todos os atos culmina na própria peça do teatro. No julgamento da
Ação Penal nº 470, a maneira fatiada, com o qual o ministro relator expôs os
fatos e suas considerações jurídicas no caso do mensalão no Supremo Tribunal
Federal (STF), assemelha-se, na sua racionalidade e coerência, à elaboração da
dramaturgia. Ainda que discordâncias possam existir quanto ao mérito da
atribuição de responsabilidade sobre este ou aquele acusado, o fato é que a população
pôde acompanhar o desenrolar da trama com nítida clareza. Para alguns, as
conclusões jurídicas do julgamento podem apresentar maior relevância em face de
novos posicionamentos técnicos a serem adotados de agora em diante. Para
outros, mais importante talvez tenha sido o prazer de ver condenado certo
personagem, protagonista ou coadjuvante, político ou empresário.
É preciso, porém, dizer que até o momento vivemos diversas cenas do mesmo
ato. Ou seja, a cada dia de julgamento verificava-se um entrar e sair de
personagens e acusações. Ora as atenções voltavam-se ao político acusado de
corrupção, ora ao empresário sobre o qual recaia a imputação de lavagem de
dinheiro ou gestão fraudulenta de instituição financeira. Essas diversas cenas,
por suas vezes, estavam ainda concentradas sob uma grande categoria temática,
isto é, o mérito do julgamento a respeito da responsabilidade penal. Dito de
outro modo, o que até agora se viu foi um juízo de imputação de culpa ou, em
linguajar coloquial, a decisão do colegiado supremo acerca da condenação ou
absolvição dos réus em relação a cada um dos crimes atribuídos na inicial
acusatória. É verdade, também, que ainda faltam algumas cenas desse mesmo ato,
haja vista que restam imputações para análise do tribunal. Porém, é de se dizer
que o momento máximo desta primeira parte chegou com o julgamento do núcleo
político do governo de então.
Essa afirmativa comprova-se pela reverberação dada pela própria imprensa.
Manchetes de jornais e capas de revista semanais refletiam nitidamente esse
estado de êxtase da opinião publicada. Tal arrebatamento de espírito foi de
tamanha monta que impressos de grande circulação pareceram comemorar
condenações como triunfantes títulos nacionais em mundiais de futebol. Letras
de tanta envergadura a propiciar, inclusive, autocríticas corporativas por meio
do denominado "ombudsman".
O certo, contudo, é que o término que se avizinha desse primeiro ato
redundará imediatamente, com mínimo intervalo protocolar, no início do outro.
Esse juridicamente mais interessante. As cenas aqui estarão reunidas sob a
divisão temática da determinação da pena ou, como preferem alguns, a
dosimetria. Em suma, para aqueles que foram condenados terá o tribunal de
decidir o montante da reprimenda a ser imposta. O número de anos, o regime
inicial de cumprimento de pena privativa de liberdade, a possibilidade de
conversão da privação de liberdade por penas restritivas de direitos. Muitos
assuntos aqui terão, material e processualmente, importância crucial.
Decidir-se-á, por exemplo, se ministros que absolveram o acusado poderão também
decidir sobre a fixação de sua respectiva pena.
O que mais intriga, porém, são as razões que o Supremo conferirá ao ato de
punir. Para fixar penas é necessário decidir suas finalidades, tarefa sempre
árdua para a doutrina jurídica. Se a pena tiver um condão retributivo, o
resultado será diferente daquele outro pautado por um viés preventivo. Diversos
tribunais constitucionais já se depararam com esse dilema. Vejamos como nosso
órgão máximo entenderá a questão. Afinal, para punir parece correto
perguntar-se a razão dessa mesma punição. Muito ainda se debaterá sobre o tema.
O segundo ato certamente chamará sobremaneira a atenção da opinião pública.
Muito ainda falta para - parafraseando a teatral obra lusitana do século XVI de
Gil Vicente - as primeiras barcas capitaneadas pelo Creonte zarparem em direção
ao seu destino.
Fonte: Valor Econômico
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