- O Estado de S. Paulo
Desconexão quase total entre representante e representado impõe uma mudança de foco
Para tempos de crise, neurocientistas de ponta coincidem com a sabedoria milenar do budismo: “A solução não se dá ao nível do problema”. Quer dizer que o breakthrough, o ponto de ruptura de impasses, não será localizado nos termos em que o problema é posto. Nada de misticismo. Apenas a ideia de que a solução impõe uma mudança de perspectiva e, portanto, de foco.
Essa reflexão foi suscitada por uma varredura da literatura jornalística especializada a que me obrigo para tomar o pulso de uma crise. Os fatos, diz Garton Ash, são subversivos. Mas numa democracia de massa a percepção dos fatos varia em função dos interesses afetados, do tempo de decantação por diferentes atores sociais e dos filtros institucionais à disposição da sociedade para absorvê-los. Em tempos de “fatos alternativos” à maneira de Trump (há outras) e de redes sociais, a qualidade subversiva dos “fatos” adquire contornos novos.
Será que aquela prescrição se aplica também às conjunturas críticas que estão na esfera das instituições e da ação coletiva, da política, pois, e não na esfera individual? Para situações como a nossa, em que a sucessão de fatos subversivos se assemelha à de um longo seriado, desdobra-se em crises que se entrelaçam, gerando uma tempestade perfeita? São tempos de recessão e desemprego; de Lava Jato; de incerteza quanto ao futuro do governo Temer; de Operação Carne Fraca, que atinge um dos (poucos) casos de sucesso do capitalismo de Estado à brasileira.
Ao analista político cabe só analisar criticamente em que termos o problema está sendo posto – e explicar-se caso acredite ser necessária uma mudança de foco. É o caso aqui, por três razões: 1) As características distintivas da nossa conjuntura, da óptica do eleitor; 2) de que forma a economia entra na equação política do eleitorado; 3) a responsabilidade do jornalismo.
As características da conjuntura atual obrigam a reintroduzir a perspectiva do eleitorado, não apenas por ser o ator que em última instância legitima o acesso ao poder. A teoria política reserva-lhe lugar central ao fundamentar a superioridade do regime democrático em termos de sua capacidade de autocorreção: um regime dotado de mecanismos que garantem a redefinição de rumos, em bases periódicas, as eleições, às quais se somam as instituições que garantem prestação de contas periodicamente e também em condições excepcionais.
Sabemos que há várias crises que se sobredeterminam e que o diagnóstico e a solução para cada uma delas tem forte dimensão técnica. Mas na percepção correta do eleitorado as crises econômica, política e a corrupção sistêmica se imbricam e se reforçam mutuamente. Daí o desalento e o ceticismo que tende a desaguar no voto de protesto e antiestablishment. Visto como uma emoção reativa (não como filosofia), o ceticismo reflete um sentimento de impotência, de falta de controle sobre os acontecimentos – como indica a composição dos eleitorados de Trump e do Brexit. Dessa óptica, é só um sinal a ser decifrado pelo analista. Como desafio, porém, deve ser bem equacionado pelos políticos expostos à concorrência eleitoral, sob pena de derrota e de revisão estratégica dos rumos do país, como atestam as lideranças do Partido Democrata nos EUA e do Partido Trabalhista no Reino Unido. Mas a analogia acaba aí, por motivos que tornam mais incerta a nossa travessia.
Uma delas é que a relação com a lei é diversa. Sob o impacto da Lava Jato e de transformações anteriores no ordenamento jurídico, o cálculo político de curto prazo, eleitoral, tem novos contornos. Prevalece o critério de autopreservação.
É a partir desse contexto que adquire sentido o impulso conservador de projetos de reforma em curso no Legislativo, especialmente o de reforma política coroada pela regra de lista fechada. Não estão pautados por cálculo estratégico, como no caso de Trump: por um projeto alternativo (embora reacionário) de país, ancorado em identidades partidárias nítidas e numa coalizão social nacionalista-protecionista-confessional arraigada desde 1994 e redimensionada desde a crise de 2008.
As circunstâncias de quase total desconexão entre representante e representado impõem uma mudança de foco. Os critérios de desempenho a ser adotados para avaliar as propostas de reforma político-eleitoral e de abuso de autoridade são dois: se tornam o voto e a prestação de contas mais inteligíveis para o eleitor e se contribuem para reforçar os mecanismos de autocorreção de nossa democracia.
Nesse quadro é pertinente ressaltar uma diferença essencial, mas subestudada, entre o impacto da Lava Jato e o da Mãos Limpas. Neste último caso, as lideranças da esquerda organizada, sob a égide de um Partido Comunista engajado no aperfeiçoamento da democracia representativa, saiu-se comparativamente ilesa. Essa diferença ilustra bem o fato de que vivemos uma crise de legitimação política que se sobrepõe à crise estrutural de representação. Significa que nossa travessia está mais exposta a acidentes de percurso.
Diante da falta de inteligibilidade político-ideológica do voto, é a economia que fornece ao eleitor, bem ancorado em seus interesses, as condições mínimas de inteligibilidade. O desempenho da economia converte-se em principal critério de legitimação política, por ser o único que faz sentido.
Por isso, as projeções eleitorais para 2018 são prematuras. Sob o impacto da Lava Jato e do desempenho da economia, o impulso para ruptura dos impasses depende, sim, da qualidade da reforma político-eleitoral, mas também de duas outras condições. De como o governo e os meios de comunicação responderão ao desafio típico das democracias de massa: como reduzir o hiato entre o caráter instantâneo da informação e a capacidade da população para elaborá-la? Um hiato tanto maior em sociedades desiguais onde a educação é valor subalterno – o que aumenta a responsabilidade social e política do governo, do jornalismo e do sistema de Justiça.
*Cientista política, professora aposentada da USP, ex-presidente da Associação Internacional de Ciência Política, membro da Academia Brasileira de Ciências, é autora de 'Democracia, Mercado e Estado' (FGV, 2011)
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