sexta-feira, 17 de novembro de 2017

José de Souza Martins: Privilégios vs. direitos

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Numa sociedade em que um número significativo de pessoas conserva ou reivindica privilégios próprios do chamado Antigo Regime, fica difícil convencer quem vive do suor do próprio rosto de que a reformulação de direitos trabalhistas que os limitam constitui justa medida de correção de anomalias sociais. Ou que a salvação da economia, que carrega embutidas graves injustiças sociais, constitua o presente de Papai Noel, de 2017, para aqueles que hoje vivem na incerteza da busca de emprego.

O que é bom para a economia e o lucro não é necessariamente bom para o cidadão. Sem o justo equilíbrio entre a remuneração do capital e a remuneração do trabalho, todos perdem. Entre nós, os direitos sociais tendem a ser a migalha que sobra de privilégios que tem precedência em relação a eles.

Quando uma ministra de Estado, cujos antepassados foram, provavelmente, escravos e se considera escrava por ter-lhe a lei tolhido o direito de acumular vencimentos que chegariam a R$ 60 mil por mês, não há como não pensar em quem ganha salário mínimo, preto, pardo ou branco. Alguém que sequer pode recorrer aos tribunais para defender-se da perversidade do ganho insuficiente para a sobrevivência decente da família.

Quando membros do Judiciário reivindicam "ajuda" para mudar de casa ou para pagar a cara educação dos filhos, não há como não pensar em quem mal consegue morar ou naqueles cujos filhos carecem de uma educação que os emancipe do cativeiro de insuficiências que os atam ao pelourinho da inferioridade social.

Quando membros do Legislativo, que ganham exageradamente bem, tem ainda o descabido privilégio do confortável apartamento funcional, não há como não pensar nos barracos das favelas e nos cortiços em que centenas de milhares de pessoas mal sobrevivem. Quando vemos políticos de origem nobre e também os de origem pobre agarrados à função eletiva, como se fosse ela um direito de nascença, não há como não desanimar. Aqui, nem mesmo há diferença entre direita e esquerda no apego aos privilégios do poder.

Tentemos entender o que nos trouxe até aqui: o presidente do Conselho de Ministros do Império, João Alfredo, do Partido Conservador, colocou diante da princesa Isabel, no dia 13 de maio de 1888, para que a assinasse, a Lei nº 3.353, a Lei Áurea, uma lei de apenas dois artigos, simples e diretos: "Art. 1º: É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil. Art. 2º: Revogam-se as disposições em contrário". O poeta paulista Paulo Eiró, que morreu no Hospício de Alienados da Várzea do Carmo, cujas ruínas ainda existem no parque Dom Pedro II, deplorou que a proclamação da Independência tivesse sido um ato incompleto: não proclamou o fim da escravidão. Já a proclamação da abolição da escravatura não proclamou o fim dos privilégios estamentais dos bem-nascidos. Ao contrário, a realidade peculiar do país estendeu-os aos malnascidos, mas espertos. Quase tudo neste país é incompleto, inacabado, insuficiente.

Falta-nos, portanto, uma lei: "Art. 1º: Ficam abolidos todos os privilégios no Brasil. Art. 2º: A vida de todos os brasileiros será regida pelo Direito. Art. 3º: Todos os brasileiros são iguais perante a lei. Não haverá brasileiros mais iguais do que os outros. Art. 4º: Revogam-se já as disposições em contrário".

A lei ainda não existe porque somos um povo manso, orientado por uma concepção carneiril da política e da sujeição a quem manda. Nossas lutas não são políticas. São pré-políticas, como as define Eric Hobsbawm. Conseguimos gritar, xingar, tomar as ruas, depredar, invadir, mas não conseguimos transformar e superar, criar barreiras propriamente políticas e civilizadas às iniquidades que nos vitimam, criar e valorizar instituições por meio das quais poderíamos assegurar nossa representação política autêntica.

Temos o direito de voto, mas não raramente votamos para que os votados não nos representem, abdicamos da cidadania. Para que se representem a si mesmos, suas famílias, suas corporações, suas religiões, e não os cidadãos. Reforçar o caráter oligárquico do sistema para depois bajular os que o personificam é sabidamente um resquício da escravidão e dos regimes de servidão a ela associados.

Não estou falando ainda da escandalosa corrupção política que destroçou as instituições, que corrompeu o caráter não só de políticos, mas também de eleitores. Quem vota em corrupto é tão corrupto quanto o votado porque legitima a desmoralização da regra republicana do voto como ação de constituição da representação política. Aqui, esse voto representa a renúncia ao direito de ser representado na estrutura de poder da sociedade de direitos em nome do cabresto da sociedade de privilégios.
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José de Souza Martins é sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Fronteira - A Degradação do Outro nos Confins do Humano” (Contexto).

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