- Folha de S. Paulo
O 'Lula livre' de Manuela e Boulos cai num paradoxo, pois seria quase o mesmo que defender Lula impune, gozando do bom e velho foro
Se a esquerda brasileira pretende se renovar a partir da visão de mundo exposta por Manuela D'Ávila (PC do B) e Guilherme Boulos (PSOL) em artigo publicado neste espaço (8/4), pode ser mesmo que estejamos diante do "maior ataque à democracia desde o fim do regime militar", como alardearam os dois pré-candidatos à Presidência.
E pior: um ataque coordenado que parte dos dois extremos do espectro político, não apenas da direita, como querem fazer crer as duas jovens lideranças que Lula, no discurso com o qual encerrou seu ato de resistência light à prisão, pareceu ungir como herdeiros de longo prazo do legado petista.
Sem economizar nos lugares-comuns do "golpe" e da "violência fascista", que têm sido bordões de "resistência" dos indignados com a chamada judicialização da política —num momento que, por isso mesmo, exigiria interpretação cuidadosa e nuançada—, os pupilos clamam pela "defesa da democracia".
Há um paradoxo flagrante nesse discurso alarmista, e por duas razões principais.
Primeiro porque, apesar do clima de conflagração que tem levado a episódios escancarados de violência, não mais circunscritos aos rincões onde isso desde sempre foi o cotidiano da política, o quadro eleitoral é francamente favorável às candidaturas de oposição.
Com popularidade quase abaixo de zero, o governo de turno patina desesperadamente —é de desespero mesmo que se trata: sem o foro privilegiado, a coisa se complica para muito governista logo ali adiante. Dificilmente essa turma se recupera a tempo de colocar um dos seus no Palácio do Planalto.
Só faria sentido a ameaça à democracia se o "campo progressista" de que falam Manuela e Boulos em seu artigo tivesse sido amordaçado e impedido de disputar em condições de igualdade. Evidentemente não é o caso, como se vê —a ponto de até o próprio PT poder nutrir real expectativa de voltar a governar o país.
Quando pré-candidatos de PC do B e PSOL, recém-ungidos por Lula, assinam juntos um manifesto em que acusam a Justiça de ter apressado o julgamento do líder petista e incorrido numa "absurda e ilegal decisão de prendê-lo", declaram abertamente o descaso por algo que lhes deveria ser caro acima de tudo.
Não faço aqui apenas a óbvia, até um pouco batida —embora sempre necessária—, defesa das instituições. (São elas, afinal, que vão garantir aos dois jovens líderes ter seus nomes na urna em outubro.) Mas é aí, justamente, que o discurso dessa nova esquerda toma um rumo perigoso; é aí que ele pode, em vez de combater, paradoxalmente engrossar os ataques recentes à democracia. Quando gritam "eleição sem Lula é fraude", os apoiadores do ex-presidente mostram um menosprezo indireto (mas suficientemente claro) ao sufrágio em si.
Pois tem duas faces a acusação de que os índices de intenção de voto do líder petista sejam o motivo por trás de uma "perseguição judicial" a Lula. Em nome de uma pretensa defesa da presunção de inocência, inventa-se, a seis meses da eleição, a presunção de mandato —e o réu se torna intocável porque atacá-lo seria calar por antecipação a vontade popular.
Soa evidente a qualquer observador informado que, mesmo que não fosse preso agora, Lula não escaparia desse destino, dado que viu seu nome envolvido num total de nove processos com alto potencial para condená-lo em algum momento.
Eis a segunda razão pela qual Manuela e Boulos se fecham num paradoxo insolúvel: "Lula livre" seria quase que certamente Lula impune, gozando do bom e velho foro, aquele mesmo; se novamente empossado no cargo máximo da República, provavelmente acabaria impedido e preso de qualquer jeito, talvez sob guerra civil.
É esse o desfecho da crise que os renovadores do campo progressista pretendem?
Ora, os novos nomes da esquerda que se cocem —como se dizia lá em casa— e tratem de reconquistar o poder sem lançar mão de sofismas que igualam popularidade a mandato popular e só se prestam, no fundo, à defesa do que há de mais retrógrado na nossa política.
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Christian Schwartz, doutor em história social (USP/Cambridge), é jornalista e tradutor
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