- Eu & Fim de Semana | Valor Econômico
O eleito neste domingo enfrentará uma nova fase política do país. Muitas coisas do antigo sistema foram rejeitadas pelas urnas e outras terão de ser remodeladas para que se inicie um ciclo de estabilidade política, econômica e social, como houve entre 1993 e 2013. A necessidade de reformulação não significa, porém, que o país conseguirá sair facilmente da crise. Pelo contrário, o próximo presidente terá um mandato muito difícil e deveria começar a se preparar para o tamanho do desafio já no dia seguinte da eleição, criando as condições políticas para uma mudança bem-sucedida.
O primeiro desafio será restabelecer um novo padrão de governabilidade no Congresso Nacional. O sistema partidário foi bastante alterado pelo voto e haverá um novo jogo de alianças interpartidárias. De todo modo, serão necessárias coalizões para governar, pois nem Bolsonaro, mesmo com todo o avanço do PSL, nem Haddad têm apoio majoritário dos deputados federais, muito menos dos senadores.
Pode-se criticar os vícios do presidencialismo de coalizão, em particular porque muitas vezes houve vinculação entre a distribuição de cargos e a corrupção. Mas ninguém conseguirá exercer democraticamente o poder sem algum tipo de aliança formalizada. Qualquer tentativa de subverter isso tende a ser malsucedida ou, pior, pode produzir um modelo bonapartista de governo, com o Executivo tentando comandar monocraticamente o sistema político. Collor e Dilma, cada qual a seu modo, devem servir de exemplo para o próximo presidente. É bom lembrar que a lua de mel com o povo é sempre mais curta do que imaginam os vencedores.
A maioria da Câmara é nitidamente de centro-direita. Só que a montagem da agenda parlamentar não se define apenas pelo perfil ideológico dos deputados. Todo o jogo do próximo mandato começa com a eleição do presidente da Casa, pois as regras internas favorecem uma forte centralização do poder. Errar nesse processo pode custar muito caro, porque o apelo ao clamor das ruas pode incomodar os deputados no início e em momentos de grandes escândalos, mas a aprovação de reformas constitucionais, que exigem maioria qualificada, depende de um processo decisório mais lento e contínuo.
Depois da eleição da Mesa da Câmara é preciso montar uma coalizão razoavelmente estável. Claro que parte dos votos pode ser mais móvel e negociada caso a caso. Porém, ter uma base bem estabelecida, de um pouco mais da metade dos deputados, reduz o custo da negociação com todos aqueles que poderão votar com o governo, sejam os da base, sejam os apoiadores eventuais. Construir essa coalizão exige que parlamentares e seus partidos se sintam partícipes do governo, o que, em alguma medida, passa pela distribuição de postos de comando no Executivo e no Legislativo.
O centro tornou-se menor na última eleição, mas será fundamental para um governo Bolsonaro ou Haddad. Mesmo mais fragmentado e enfraquecido em relação às legislaturas anteriores, os partidos mais centristas são essenciais para aprovação das reformas, porque os blocos mais para a direita ou para a esquerda, embora mais unidos e revigorados pelas urnas, não têm tamanho para aprovar as medidas necessárias às reformas legais. Destaque deve ser dado à trinca MDB/PSDB/DEM, dado que tais legendas possuem parlamentares muito experientes no jogo congressual, capazes de agilizar ou paralisar o trâmite dos projetos.
Também será essencial que o próximo presidente saiba lidar com os "checks and balances" do sistema político. O primeiro deles é o Congresso, mas deve ser dado destaque maior ao Senado, onde se soma uma alta fragmentação - a maior da história da Casa - com a baixa representação dos partidos que hoje competem no segundo turno. Além disso, há vários senadores com grande experiência política, talvez a maior entre os políticos do país, que estão dispostos a criar uma espécie de "Poder Moderador", capaz de evitar os arroubos e radicalismos do próximo presidente.
É bem provável esse grupo de senadores ajude na aprovação de determinados projetos, só que exigirão ser ouvidos e, de alguma maneira, participar do processo de negociação. De todo modo, o Senado terá muito mais força do que a Câmara para frear qualquer tentativa de bonapartismo ou de exercício mais autoritário do poder.
A relação com o sistema de Justiça será um dos grandes desafios políticos do novo presidente. Houve um reforço de instituições como o Ministério Público e o Supremo Tribunal Federal nos últimos anos e, mesmo que tenham cometido erros em várias ocasiões, ninguém com o mínimo de juízo imagina que seja possível governar passando por cima dessas estruturas institucionais. Será preciso conversar constantemente com esses atores e saber que, em alguns momentos, o Executivo terá decisões judiciais contrárias ao seu interesse. Tentar jogar o povo contra esse processo tenderá a aumentar o desgaste ao longo do tempo.
O controle do poder presidencial passa, ainda, pelo relacionamento do novo governante com a oposição, a sociedade civil e a imprensa. Qualquer presidente briga com esses atores ao longo do mandato, pois algum grau de conflito entre o voto da maioria e a pressão de grupos organizados faz parte do jogo político democrático.
No entanto, é importante que o chefe do Executivo saiba como dosar essa interação nos momentos de maior conflitividade, em termos de forma, intensidade e recorrência. Se ultrapassar certas linhas, seguindo padrões mais personalistas e autoritários, perderá apoio até dos seus eleitores.
A discordância com a imprensa, a oposição e organizações da sociedade não pode significar a deslegitimação de tais grupos. Na eleição, o contato direto dos líderes políticos com o povo e/ou uso das redes sociais dão a impressão que é possível governar por meio do apelo contínuo dos eleitores. Entretanto, o governo é bem diferente do processo eleitoral, como mostram vários exemplos ao longo da história da humanidade, e o caso de Jânio Quadros já seria suficiente para ilustrar a experiência brasileira, que renunciou esperando que o povo o trouxesse de volta ao poder.
O próximo presidente precisará, ademais, conversar, ajudar e buscar cooperação junto aos governos subnacionais, sobretudo os Estados. É sempre bom lembrar que as principais políticas públicas do país, como nas áreas de educação, saúde e segurança, são implementadas de forma descentralizada, e se prefeitos e governadores fracassam nesse processo as consequências negativas respingam no governo federal.
O novo governante terá, necessariamente, que lidar com governadorias comandadas por partidos diferentes, inclusive de oposição à sua gestão. Prejudicar os adversários ou tentar colocar a opinião pública contra eles só aumentará o extenso rol de problemas do presidente.
Numa democracia, todo governante tem de saber que deverá ser mais moderado do que fora na eleição. Isso é importante, primeiro, para negociar as desavenças entre os aliados, que crescem quando precisam dividir efetivamente o poder. Muitas vezes são os apoiadores de primeira hora os que mais trazem problemas. Já vimos brigas históricas entre petistas, de tucanos com seus aliados de centro e o PSL, em alguma medida, também não deverá fugir desse enredo. Nessas horas de conflitos entre amigos, árbitros e bombeiros são essenciais, com discursos bem menos inflamados que os usados no período eleitoral.
A moderação e a parcimônia serão igualmente essenciais para lidar com o contraditório, com a necessidade de negociar e convencer outros. A produção de políticas públicas, ressalte-se, vai além dos momentos de construção da agenda e formulação dos programas.
A implementação é a parte mais difícil e nela novos atores entram, como professores, médicos, policiais, membros da população local, entre outros. Conversar com eles, motivá-los, é tão importante quanto atrair votos no Congresso. Ninguém mudará a educação sem falar com os docentes; é impossível alterar a violência na periferia sem ouvir as comunidades e favelas dos grandes centros urbanos.
O presidente, neste sentido, precisa ouvir muito para que suas ideias prosperem, pois sua liderança já não é a do super-homem que se vende nas eleições contemporâneas. Seu poder virá da paciência, do saber reconhecer o valor de outros, da capacidade de ajudar a construir um ambiente menos polarizado.
É este o ponto de partida para um novo ciclo político: a criação de um ambiente político pacificado, de respeito mútuo, de tolerância como guia das ações, de crença irrestrita no poder da democracia. Se o novo presidente não for capaz de pacificar o jogo político, o espírito das manifestações de 2013, que tem sido central para vocalizar novas demandas, mas também para desestabilizar o sistema, continuará preponderante.
Ninguém conseguirá governar sob essa névoa, sobretudo porque o país precisará fazer reformas institucionais profundas e complexas para voltarmos à combinação de bom desempenho político, econômico e social que, por duas décadas, trouxeram esperança de um futuro melhor aos brasileiros. Esse ciclo virtuoso se foi, mas ainda não sabemos como encontrar um novo caminho. Só sei que não será pela via autoritária que melhoraremos o Brasil. Nossos filhos e netos não merecem que joguemos a democracia fora.
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Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP
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