- O Estado de S.Paulo
Jornalismo que ajuda o Brasil é o jornalismo que desafina as narrativas governamentais
À medida que o governo federal sobrevive a si próprio, normalizando o que era impensável, vozes a favor se desinibem em algumas redações jornalísticas. Alegam que os “pontos positivos” do novo poder também precisam ser noticiados.
Até aí, nada de tão grave. Ninguém em sã consciência vai propor que a reportagem esconda fatos nos quais o governo se saia bem. Sendo assim, devemos receber com naturalidade o coro contente que começa a se soltar. Estamos dentro do esperado. Era previsível. Qualquer que seja o mandatário, sempre haverá os que nele veem luzes, mesmo que pálidas. Quem quer que se instale na cadeira e lance mão da caneta – cujo tamanho e cuja potência excitam imaginações despreparadas – contará com amigos a granel dispersos em editorias triviais ou exóticas.
Além de previsível, o diapasão desse otimismo localizado é também legítimo. Jornalistas que reportem méritos no governante de turno não ferem os fundamentos da democracia. Além disso, podem estar buscando uma relação privilegiada com as fontes do Planalto. Autoridades adoram elogios, mesmo que moderados, e, quando satisfeitas, retribuem entrevistas exclusivas no lugar de palavrões.
Há que levar em conta, ainda, que garimpar e difundir notícias edificantes sobre a cúpula do Executivo não é o mesmo que contar mentiras. Com efeito, há um lado bom em tudo nesta vida: nos amores que acabam, no diagnóstico de câncer, no caráter do Neymar e, por que não?, no presidente da República. Em suma, além de legítimo, é relativamente fácil explorar um viés quiçá positivo no meio das tragédias em curso.
Agora vamos ao que mais importa. Tirando a previsibilidade e a legitimidade desse tipo de atitude, a quem ajuda um jornalismo que busque angulações favoráveis ao governo? “Jornalismo a favor” – isso interessa para a opinião pública?
Antes de responder, convém adotarmos uma cautela de método. Para que nosso debate não fique excessivamente contaminado pelas paixões políticas, mudemos de objeto. Imaginemos que, em vez de um governo, o objeto de cobertura fosse mais técnico, menos figadal. Imaginemos que fosse um assunto mais anódino, como, digamos, a aviação comercial. A quem ajudaria um jornalismo que procurasse falar bem das companhias aéreas e mostrar preferencialmente o lado positivo do vaivém dos aviões? A quem serviriam as redações que se empenhassem em noticiar, em detalhes, todos os voos que terminam bem, sem incidentes nem acidentes?
De novo, antes de responder, façamos outra pausa. Tentemos conjecturar como seria a cobertura completa das boas notícias da aviação. Se fizermos essa tentativa, logo veremos que teríamos uma enorme dificuldade de escala, uma vez que são deveras numerosas as viagens aéreas que chegam normalmente ao seu destino.
O site Flightradar24, que rastreia voos em todo o mundo, dá um número estratosférico. No dia 30 de junho de 2018, contou nada menos que 202.157 decolagens em todos os países, um recorde. Pois então. De posse de tamanha cifra, perguntemo-nos: como seria se todas essas boas notícias (“o avião não caiu”) recebessem o justíssimo destaque meritório? Quantos anos deveria durar uma única edição de um telejornal? Quantos quilômetros quadrados deveria ter a primeira página de um diário?
Por aí aprenderíamos, instantaneamente, que o nosso hipotético “jornalismo a favor” tem um problema de escala simplesmente insolúvel. E esse nem seria o maior problema. Além dele, teríamos um descalabro muito mais grave, o da inutilidade social. A quem interessariam tantas reportagens positivas sobre as aeronaves e seus tripulantes maravilhosos? Talvez aos familiares e amigos das aeromoças e dos comissários de bordo, não ao público.
Este é o ponto. As sociedades democráticas inventaram jornalismo não para se deleitar com relatos das coisas que aconteceram conforme o esperado, mas para saber, e rápido, do que deu errado. Notícia é o que fugiu do script. Notícia é o avião que cai. Notícia é o que o poder tenta esconder. É chato, é desagradável, é antipático, mas é o que é. “Agenda positiva” a gente encontra em revista de bordo – ou no discurso de empresários, líderes religiosos, generais ou capitães. No jornalismo independente, “agenda positiva” não tem serventia.
Agora chega de aviação. Voltemos ao nosso objeto original: o governo. Será missão da imprensa reportar as boas ações de ministros? Você pagaria a sua assinatura de jornal para ler os nomes de todos os professores de todas as aulas que começaram e terminaram no horário devido em todas as escolas públicas do País? Ou para ler longos perfis de conselheiros de autarquias que não cometem erros de Português nos memorandos e não praticam o esporte de desviar dinheiro público? É claro que não.
Imprensa só é útil quando aponta indícios de ilícitos e condutas estranhas. Só ajuda quando incomoda quem manda. O melhor que podemos esperar de um jornal é que ele seja o pior pesadelo na rotina de um governante. É claro que jornalistas não devem ser arrogantes ou presunçosos, claro que não devem destratar os entrevistados, prejulgar os suspeitos ou desprezar a boa-fé alheia. Profissionais responsáveis observam os protocolos da elegância e da boa educação. Mas, na essência, jornalistas são pagos para duvidar e para achar defeitos onde o fanatismo vê virtudes miraculosas.
Se queremos um jornalismo que ajude o Brasil, queremos um jornalismo que desafine as narrativas governamentais. O jornalista sério é uma pedra no sapato dos jogos de cena com os quais todos os governos se adornam inevitavelmente. Estamos falando, aqui, de qualquer governo – incluindo o presente.
Jornalistas fortalecem a democracia quando se esmeram no ceticismo – e são verdadeiramente brilhantes quando reconhecem de longe (por mais perto que ocasionalmente estejam) o governante que quer encantoar a liberdade de imprensa para enfraquecer a democracia.
* Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP
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