Decerto que eleições municipais têm um caráter singular em que são dominantes os temas locais, embora as que estão em curso guardem um significado plebiscitário implícito quanto a avaliação do governo Bolsonaro, que não por acaso evita se comprometer com candidaturas, mesmo com aquelas que lhe acenam com simpatia, salvo quando elas lhe permite confrontar com eventuais adversários em 2022, enquanto forças políticas de adesão democrática buscam demarcar com nitidez sua rejeição às suas políticas de governo, tal como nos casos da cidade de São Paulo, com a candidatura Boulos, de Porto Alegre, com a de Manuela Dávila, com as de Joao Campos e Marilia Arraes, em Recife, a de Edmilson, de Belém, e do Rio de Janeiro com a de Marta Rocha, cuja ênfase nas questões locais mal disfarça o sentido nacional da sua candidatura, inclusive pela contundente crítica ao candidato Crivela que procura identificação com o governo Bolsonaro, e em tantas outras.
É fato, contudo, que éticas de convicção rareiam neste cenário eleitoral em que predominam os cálculos de oportunidade. Mas uma circunstância externa a esse quadro pode vir a subverter as suas atuais marcações, qual seja as eleições presidenciais nos Estados Unidos, marcadas para o dia 3 de novembro, que, no caso da vitória de Biden deverá importar fortes repercussões na cena política brasileira com impactos sensíveis no pleito municipal de 15 de novembro. Até lá, convicções mal dormidas, podem encontrar tempo para despertar.
Os resultados eleitorais não terão efeitos
banais. Eles servirão de vetor para o alinhamento das forças políticas e
sociais, mas não se devem cultivar ilusões de superação imediata da atual cena
de atraso e rusticidade da atividade política. Poderão, sim, estimular os
impulsos, ainda em embrião, em favor da mobilização da oposição democrática ao
que aí está, instituindo um novo patamar para novos avanços mais adiante. Por
ora, fora do radar um retorno ao estado de coisas anterior ao governo
Bolsonaro. Não eram apenas os 40 milhões de brasileiros que viviam em situação
de invisibilidade de que apenas agora se teve ciência, era toda uma sociedade,
inclusive seus segmentos ilustrados, que não foi capaz de identificar a miséria
política e o primitivismo moral e intelectual que tomara conta da alma do país.
Os fios que nos mantinham vinculados às
nossas melhores tradições e valores se encontram esgarçados, quando não
rompidos. Conceder vida nova a eles, implica mais do que uma simples
restauração, pois traz consigo o imperativo da inovação, para o que a agenda do
espírito do tempo deste século com seus temas emergentes da questão ambiental e
das relações solidárias entre os viventes nesse planeta é mais do que propícia.
Resgatá-los, inovando-os, significa agora levantar um dique à ideologia
neoliberal que nos ameaça com a desertificação moral e cívica na esteira de
mecanismos autônomos do mercado como enteléquia fora de controle humano.
Sob a pandemia se visualizou com nitidez
duas dimensões de onde podem fluir tal reanimação. A primeira delas é a da
ciência, com protagonismo das suas instituições dedicadas às atividades da
biomedicina, e a que provem da esfera pública dos subalternos no desempenho de
ações orientadas para a auto-organização da vida popular, plataforma a partir
da qual foram estabelecidos nexos com a universidade e segmentos do estrato dos
intelectuais. Não à toa, a lista de candidatos que concorrem às câmaras de
vereadores revela um bom número de originários com esse perfil.
Sob o influxo dessa movimentação de novo
tipo, mesmo que em estágio precoce, germinam possibilidades de mutação na agenda
tradicional das forças democráticas, especialmente na esquerda, visível na
perda de ênfase da temática do nacional-popular, predominante entre nós por
décadas, que ora começa a ceder lugar à pauta das demandas igualitárias.
Exemplar disso está na crescente influência sobre nossos cientistas sociais da
obra de Thomas Piketty, como no caso notável de “Uma história da desigualdade:
a concentração de renda entre os ricos no Brasil (1926-2013)”, do jovem
sociólogo Pedro Ferreira de Souza, que sonda as raízes da invisibilidade da
nossa miséria material e político-moral.
Estivemos imersos por longas décadas a partir do Estado Novo nos temas e nas políticas de modernização, ora em versões autocráticas, dominantes no período, ora em versões brandas, mas nenhuma delas renegou o papel da esfera pública na perseguição dos seus fins. No governo que aí está, pela primeira vez em nossa história política republicana, ela é concebida em pura chave de mercado. Para o argumento neoliberal dos atuais governantes, por modernização entende-se a destituição do público e das suas instituições a fim de deixar terreno livre para o aprofundamento irrestrito da expansão do capitalismo, seja no mundo agrário, no urbano, onde quer que se identifique uma fronteira propícia à acumulação de capitais, como nos resorts do litoral ou mesmo nos cassinos, objeto de desejo do nosso patético ministro da Fazenda. Na esteira de Thatcher, Reagan e Trump, para Bolsonaro não existe essa coisa de sociedade.
Essa construção ideal é exótica às nossas tradições, mesmo nas de raiz conservadora, ela está aí por um acidente de caminho, cujas sequelas começamos a reparar, passo a passo, como nas atuais eleições.
*Luiz
Werneck Vianna, sociólogo, Puc-Rio
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