Vamos
tentar entender melhor o motivo disso. Nascido em 1890, em Rio dos Índios,
localidade de Rio Bonito, na velha província fluminense, Astrojildo vivenciou,
em 1908, um episódio que o marcaria para o resto da vida. Foi assim. Ao ler nos
jornais que o romancista Machado de Assis agonizava, ele pegou, imediatamente,
uma barca em Niterói, atravessou a Baía de Guanabara e desceu na Praça Quinze,
no centro do Rio de Janeiro. Lá chegando, se enfiou em um bonde e foi bater com
os costados, no Cosme Velho, aprazível bairro onde vivia o autor de Memórias
póstumas de Brás Cubas.
Profundo
admirador da obra machadiana, o rapaz, de apenas 17 anos, queria se despedir do
velho mestre. Expôs sua intenção às pessoas que se encontravam na casa e foi
autorizado a entrar, no quarto do escritor. Ajoelhou-se, beijou-lhe então as
mãos e logo depois se retirou. Na belíssima crônica “A última visita”, Euclides
da Cunha, que presenciara a cena, escreveu: “Naquele momento, o seu coração
bateu sozinho pela alma de uma nacionalidade. Naquele meio segundo em que ele
estreitou o peito moribundo de Machado de Assis, aquele menino foi o maior
homem de sua terra”.
Dois
anos após esse acontecimento, civilista convicto e já começando a se impregnar
de ideias anarquistas, Astrojildo Pereira desembarcou no cais da Praça Mauá, no
Rio, e foi conhecer algumas das principais capitais europeias. Perambulou seis
meses pelo Velho Continente e retornou ao Brasil. No ano de 1911, ele já
colaborava com o órgão anarquista Guerra Social, trabalhava como gráfico e
linotipista e militava no movimento anarquista. Em 1913, integrou, com um grupo
de aguerridos companheiros, a primeira central operária brasileira, a COB, da
qual se tornaria o secretário geral. Em 1917 e 1918, liderou uma série de greves
operárias que abalaram o Rio de Janeiro. Foi preso e barbaramente espancado
pela Polícia, no final de 1917, e novamente preso, no ano seguinte. Não
esmoreceu. Em 1922, sob inspiração direta da revolução bolchevique na Rússia,
fez a opção definitiva pelo marxismo e ajudou a formar o Partido Comunista no
Brasil. Em 1924, viajou para Moscou, já investido na condição de secretário
geral do PCB. Nesse mesmo ano, assistiu, na Praça Vermelha, aos funerais de
Vladimir I. Lênin – o arquiteto da revolução bolchevique e também do Estado
soviético. Ainda em Moscou, por essa época, dividiu alojamento com um líder
comunista que seria considerado um dos grandes estadistas do século XX: Ho Chi
Minh.
De volta
ao Brasil, viveu como um revolucionário profissional. Com efeito, ele não
parava. Dedicou-se a organizar o PCB clandestino e se internou, em seguida, na
Bolívia, em 1927. Sua missão? Contactar Luiz Carlos Prestes, o chefe da Coluna
Invicta, em nome do Partido. Entregou a Prestes uma mala com livros marxistas e
tentou convencê-lo da necessidade de revolucionar as estruturas da sociedade –
e não apenas derrubar este ou aquele governo. Conseguiu atrair Prestes para as
fileiras do PCB.
Uma vez
acertado o ingresso do Partido na Internacional Comunista, Astrojildo Pereira
passou a compor sua Comissão Executiva, a instância máxima da organização, em
1929, quando parte novamente para a capital soviética. Com menos de 40 anos de
idade, ele já se apresentava como uma das grandes lideranças da revolução
mundial.
Mas não
tardaria muito e ele passou a ter sérias divergências políticas com o Partido
no Brasil. Assim, foi afastado da organização, em 1932, sob a acusação de
tentar barrar a linha dita de “proletarização” de sua política e de simpatizar,
ainda, com as ideias de Nikolai Bukharin, opositor de Josef Stalin na direção
do Partido Comunista da União Soviética.
Reintegrado
ao PCB, no bojo da redemocratização do país, em 1945, Astrojildo colaborou,
nesse meio tempo, com o jornal carioca Diário de Notícias e escreveu ensaios primorosos
sobre Machado de Assis. Sua reputação como crítico se consolidou. Tampouco
abandonou a reflexão política, debruçando-se sobre a análise do fascismo e sua
influência no Brasil. Mais: foi o primeiro a apontar para a grandeza épica dos
Quilombos dos Palmares, chamando Zumbi de “o nosso Spartacus negro”. Começou a
publicar, então, seus vários livros de ensaios. E ainda se dedicou, de corpo e
alma, à organização do I Congresso Brasileiro de Escritores, realizado em 1945.
O Congresso lançaria, praticamente, a pá de cal sobre o Estado Novo de Vargas.
Dele participaram Jorge Amado, Caio Prado Júnior, Graciliano Ramos, Aníbal
Machado e outros nomes de primeiríssima linha da literatura, da historiografia
e da ensaística brasileira.
Durante
o Estado Novo, Astrojildo Pereira sobreviveu vendendo frutas em um depósito em
Niterói, o que motivou Manoel Bandeira a escrever um poema sobre ele:
Bananeiras
– Astrojildo esbofa-se
Plantai-a
às centenas, às mil
Musa
paradisíaca
Que dá
dinheiro neste Brasil.
E de 1945 até o dia do Golpe de 1964, realizou pesquisas sobre a obra de Machado de Assis e a trajetória do PCB. Ao lado de sua companheira Inez, estas são as grandes paixões de sua vida, desde a juventude. Daí ter escrito, certa vez, que seu ideal de vida abarcava “um doce amor de mulher em meio a uma bravia luta política”. Seja como for, Astrojildo editou, nessas duas décadas, publicações da importância de Literatura e Estudos Sociais. Trabalhou na célebre Editorial Vitória, do PCB, e passou a ditar, na prática, a política cultural do Partido. Intelectual refinado, ele contribuiu para revelar alguns valores que brilhariam na cultura e na política, como Armênio Guedes e Leandro Konder. Por essa época, já estava publicando Machado de Assis, novelista do Segundo reinado (1942), Interpretações (1944) e Machado de Assis (1949). Formação do PCB sairia em 1962.
Astrojildo
conviveu com figuras altamente representativas da cultura brasileira, como
Oscar Niemeyer, Di Cavalcanti, Monteiro Lobato, Alberto Passos Guimarães e
Nelson Werneck Sodré – pelo lado comunista – e Otto Maria Carpeaux e Hélio
Silva, intelectuais católicos. Hélio Silva, inclusive, era um querido
companheiro desde os tempos do anarquismo. Mais de uma vez, eu o ouvi –
fascinado – discorrendo sobre isso, em meados da década de 80, quando tive
oportunidade de trabalhar com ele, no Rio de Janeiro. O saudoso historiador
narrava as andanças que Astrojildo e ele promoviam pelas ruas do Rio de
Janeiro, o que não excluía uma certa boemia.
A
explicação para esse trânsito junto a personalidades dos mais diferentes
horizontes políticos e filosóficos reside no fato de que Astrojildo Pereira
defendia seus pontos de vista sem qualquer traço de sectarismo. É bem verdade
que, nos momentos mais duros dos embates ideológicos travados pelo PCB, o velho
revolucionário se alinhou, daqui e dali, com posições que, a rigor,
contrariavam sua própria visão de mundo. É que, por formação, jamais iria
contra uma diretriz do Partido. Mesmo assim, era, basicamente, um homem
avançado em relação à sua época. Escrevendo de Moscou, em 1925, por exemplo,
reconheceu que “a Democracia, ainda que burguesa, é vista como um bem pelas
massas”.
Era, de
fato, um homem raro, desses que aparecem a cada meio século. Sua primeira
prisão política, que eu saiba, se deu em 1917; a última, em 1964. Em 1965,
devido aos rigores da prisão, onde sofreu um infarto e teve tuberculose nos
dois pulmões, morreu Astrojildo Pereira.
Foi
perseguido durante a vida inteira, mas nunca perseguiu ninguém. Lutou todos os
combates possíveis pela liberdade. Afonso Arinos tinha razão: Astrojildo
Pereira levou uma existência que honra a inteligência brasileira. Sua vida é um
desafio permanente lançado à imaginação dos melhores romancistas.
Eu o
conheci em nossa casa, no Rio de Janeiro, quando estava fazendo 13 anos. Foi
logo após sua saída da prisão. Meu pai tinha por ele um grande respeito. Guardo
até hoje, na memória, sua semelhança física com meu avô paterno. Em ambos, eu
percebia a mesma candura nos gestos, a mesma doçura no olhar, a mesma calma ao
lidar com as pessoas. Como Astrojildo, vovô era um admirador do camarada
Prestes, o Cavaleiro da Esperança. Como ele, vovô nascera na velha província.
Ao conhecer Astrojildo Pereira, foi como se eu passasse a ter mais um avô só
para mim.
A bem da
verdade histórica, é preciso dizer que o ex-governador da antiga Guanabara,
Carlos Lacerda, apesar de ser um dos principais protagonistas do movimento
político-militar de 1964, intercedeu junto às autoridades militares para que
ele fosse solto. Meu pai nunca me disse, mas, pela ligação pessoal dele com
Carlos Lacerda – trabalharam juntos, inclusive, em jornais – eu fiquei com a
impressão de que ele pediu ao então governador da Guanabara para que
interviesse para soltar Astrojildo. Aliás, em depoimento que me concedeu para o
filme que fiz sobre o velho fundador do PCB, “A casa de Astrojildo”, Norma
Dias, sua sobrinha, garantiu que o próprio tio lhe confidenciou, na prisão, que
só não foi assassinado por interferência de Lacerda. A história bateu.
Pouco
depois, soube de sua morte. Seu enterro foi uma corajosa manifestação pública
de repúdio à ditadura militar então instalada no Brasil. Inez Dias, desafiando
os esbirros do regime, gritou, à beira do seu túmulo: Viva Astrojildo Pereira!
Da mesma forma que Gregório Bezerra, Astrojildo era de ferro e flor.
Naturalmente, fiquei abalado com tudo o que estava acontecendo. No país do
final da minha infância, prendiam e maltratavam homens com mais de 70 anos de
idade. Seu pecado? Ter permanecido fiel às suas ideias de juventude. Era mesmo
assustador.
O velho
Astrojildo Pereira foi o primeiro herói da minha vida.
*Ivan Alves Filho, historiador, autor de mais de uma dezena de excepcionais livros, dos quais o último é “A saída pela democracia (2020)”
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