- Valor Econômico
Proposta
concorre para dilapidar esforços de décadas pelo aperfeiçoamento do serviço
público
“Reformar”
significa “dar melhor forma a”. Esse primeiro sentido dado pelo dicionário
promete mudança intrinsecamente positiva. É preciso, no entanto, investigar se
toda e qualquer reforma pode receber tão positiva alcunha.
Recentemente,
o Executivo federal enviou sua proposta de reforma administrativa. A pretexto
de preocupações fiscais, a PEC 32/2020 promete subsidiariedade para reduzir
inconstitucionalmente a oferta estatal de serviços públicos, mas se omitiu, por
exemplo, de conter violações ao teto remuneratório.
Como
se reinventasse a roda do tema, a PEC ignorou a aprendizagem de erros e acertos
das reformas administrativas empreendidas pelo Decreto-Lei 200/67 e pela Emenda
19/98. Se fosse madura, em vez de novas alterações constitucionais, a proposta
de reforma administrativa atual demandaria mudanças em leis ordinárias e
complementares, para dar efetividade às previsões já existentes sobre avaliação
de desempenho e controle da produtividade dos servidores públicos.
A
propósito, soa contraditória para quem defende a melhoria da gestão pública a
proposta de revogação da atual exigência da existência de escolas de governo
para formação e aperfeiçoamento dos servidores públicos.
Mas,
enfim, qual é a razão de ser da PEC 32? Em uma análise fria do texto,
parece-nos que ela pretende, essencialmente, fomentar maior concentração de
poder nas mãos do Executivo. Tal cenário tende a ampliar o risco de exercício
autoritário da gestão e facilitar hipóteses de loteamento e aparelhamento
político-partidário do Estado.
Ilustra
bem nossa preocupação a proposta de extinção dos atuais cargos em comissão e
funções de confiança, destinados unicamente às atribuições de direção, chefia e
assessoramento, para que sejam substituídos pelos novos “cargos de liderança e
assessoramento”. Por trás do que aparenta ser um mero jogo de palavras,
todavia, há duas radicais alterações.
A
primeira é que esses novos cargos, ao contrário dos atuais, poderiam ser
completamente ocupados por indicações políticas, com risco de apadrinhamento e
de uso desse poder de nomeação como moeda de troca eleitoral. A segunda mudança
é que tais cargos poderiam explicitamente ocupar-se de “atribuições técnicas”,
o que tenderia a expandir enormemente seu alcance para o núcleo da máquina
pública.
Se
aprovadas e combinadas, essas alterações dariam ensejo à mais completa ocupação
da Administração Pública por indicados políticos: seu número subiria dos atuais
(e já elevados) 6,5 mil para inacreditáveis 93 mil apenas no governo federal! É
uma mudança que privilegia a acomodação dos aliados de ocasião, em detrimento
da profissionalização do serviço público, da impessoalidade e do cumprimento da
lei. No limite, poderia haver até mesmo a corrosão por dentro de instituições
técnicas que historicamente lograram limitar a ingerência política.
Risco
de loteamento, a propósito, também se verifica na imprecisa e generalista
proposta de ampliação dos “contratos de gestão”. A pretexto de promover a
autonomia dos órgãos e entes, tal iniciativa tenderá a fomentar feudos na
Administração, com a constituição de submundos jurídicos, orçamentários e
financeiros, reduzindo a transparência e dificultando a atuação dos órgãos de
controle. Em vez de aumentar a coesão e a organicidade da gestão pública,
fragmentam-se e superpõem-se regimes jurídicos híbridos.
O
ápice, porém, dos riscos contidos na PEC reside na concessão de inacreditáveis
poderes ao presidente da República para a extinção unilateral de órgãos,
entidades e cargos públicos, prescindindo, pois, da prévia autorização
legislativa. Tamanha expansão de competência decisória, em busca de uma
voluntariosa e temerária redução do tamanho do Estado, trata-se, como alertara
Luiz Alberto dos Santos, de uma concentração de poderes que sequer a ditadura
militar ousou se autoconferir.
Com
tal medida, órgãos, entidades e cargos poderão ser livremente extintos,
transformados e fundidos, ao sabor dos interesses e das pulsões do governante
de plantão, sem que nada nem ninguém possa interrompê-lo ou atrapalhá-lo. Virá
a nós o reino patrimonialista do caos experimentalista, da desorganização de
curto prazo eleitoral e do desmantelamento de estruturas construídas por
décadas.
Não
é difícil imaginar quais órgãos e entes seriam os mais vulneráveis: os que,
pelo ordinário desempenho das suas funções legais e constitucionais, vierem a
criar empecilhos ou constrangimentos aos mandatários e a seus aliados políticos
e econômicos, a exemplo das universidades (locus intrinsecamente crítico-reflexivo)
e dos setores de fiscalização (ambiental, trabalhista, tributária etc).
O
histórico de abuso de poder é infelizmente banalizado no Brasil, de modo que
somente a ingenuidade ou a cumplicidade sustentariam ser positivo concentrar
ainda mais poderes na caneta dos Chefes de Poder Executivo.
Diversas
outras medidas contidas na PEC 32 ampliam os riscos de apropriação privada do
Estado, tais como mudanças nos concursos públicos, que podem favorecer ingresso
de apadrinhados e correligionários; criação de carreiras sem estabilidade, mais
expostas a perseguições e represálias; autorização para alterações por decreto
das atribuições dos cargos públicos, bem como permissão generalista para
militares acumularem cargos do magistério.
Em
vez de cumprir a agenda inacabada das reformas administrativas que lhe
antecederam, a PEC 32 mais se assemelha a uma contrarreforma, na medida em que,
em sua essência, concorre para dilapidar os esforços de décadas pelo
aperfeiçoamento impessoal do serviço público.
A
sociedade brasileira tem diante de si o risco de um verdadeiro rolo compressor
tendente a pavimentar avenidas de patrimonialismo, a pretexto de redução
arbitrária do tamanho do Estado. Ao Congresso, cabe não só exercer os freios e
contrapesos, como também retomar a agenda das regulamentações
infraconstitucionais necessárias para dar plena efetividade às reformas
administrativas já vigentes e ainda inconclusas em nosso país.
*Vinícius
Amaral é consultor legislativo do Senado Federal.
Élida Graziane Pinto é professora da EAESP-FGV.
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