A intolerância mais odiosa já se alojou na intimidade dos lares brasileiros.
Circularam
no Twitter no dia 29 imagens de um casal que arranca páginas de livros de Paulo
Coelho para atirá-las numa churrasqueira comum, dessas domésticas, dessas bem
feias. As folhas, aos maços, caem sobre as brasas e se transformam em
pequeninas labaredas. O casal exulta. Enquanto cuida de seus afazeres
flamejantes, desfere insultos contra o escritor, que é chamado de “lesa-pátria”
por ter criticado o governo. Entre um desaforo e outro, dizem que ele precisa
ir morar em Cuba, na Venezuela ou na Argentina. Alguém ri ao fundo. A treva
fumega.
A
Academia Brasileira de Letras (ABL), que tem Paulo Coelho entre seus imortais,
repudiou a cerimônia comburente. Em nota, a ABL argumentou, com razão, que a
agressão nos traz memórias tenebrosas, como “a destruição das bibliotecas de
Alexandria e Sarajevo, os crimes de Savonarola e as práticas do
nacional-socialismo”. É isso mesmo. Talvez sem saber, os que agora fazem
romances virar cinzas reeditam os pelotões nazistas que em 1933, na
Alemanha, em fogueiras rituais no meio da rua, torraram exemplares de clássicos
da literatura. Brincando com fogo, brincam com a História.
As
mentalidades autoritárias são assim. Não desistem. A combustão não cessa. No
dia 15 de dezembro de 1977 o Times-Union, jornal da cidade americana de
Warsaw, Indiana, estampou uma foto de um grupo de senhores e senhoras da cidade
inspecionando um ritual em que livros ardiam num grande cesto de lixo feito de
tela aramada. Eram obras que, segundo o grupo, agrediam os valores da família.
No ano passado, manifestantes na Etiópia queimaram cópias de um livro do
primeiro-ministro (vencedor do Prêmio Nobel da Paz) Abiy Ahmed, para, com isso,
dar apoio ao oposicionista Jawar Mohammed.
São
fatos históricos notórios. Além deles, porém, há os episódios menos visíveis em
que pessoas comuns se metamorfoseiam em incendiárias fanáticas. Isto é o mais
terrível nas imagens do Twitter: quem está ali atentando contra livros não são
bandos organizados de extrema direita, mas gente como a gente que, num ato
instantâneo, se escancara horrorosamente desumana. Não, não é gente como a
gente. A intolerância mais odiosa já se alojou na intimidade dos lares
brasileiros.
Muitos
dizem que o pior do fascismo é a brutalidade que ele autoriza no guarda da esquina.
Estão certos. Na mesma perspectiva, podemos acrescentar que o pior do fascismo
é a potência inflamável que ele acende entre os anônimos. Na impossibilidade
prática de queimar as pessoas, como se fazia nos tribunais da Inquisição e no
Holocausto, os novos incineradores queimam os nomes próprios dos que julgam
“traidores”. Queimam biografias. Acreditam no fogo para linchar a honra alheia
mais ou menos como acreditam no inferno.
É
preciso olhar para essas imagens com atenção, por mais que elas nos rebaixem. É
preciso escutar. Nas crepitações obscurantistas do cotidiano ouvimos o discurso
em que a Pátria vira sinônimo de governo. Logo, quem ama o brasão nacional tem
de baixar a cabeça para a autoridade, quem discorda é “impatriótico” e será
condenado à fogueira e ao exílio e vai ter de morar na Venezuela.
É
como estar dentro de uma distopia. O Brasil vira cenário da ficção
científica Fahrenheit 451, de Ray Bradburry, em que o corpo de bombeiros
usa lança-chamas para consumir as bibliotecas. Aqui e ali pipocam cenas
distópicas na vida real e nas redes sociais. Em que tipo de monstruosidade nos
estamos convertendo? Será que seremos isso, uma sociedade que queima florestas
e depois queima a reputação dos que apontam as queimadas nas florestas?
Enquanto demoramos a responder, a terra arde, a celulose vira fumaça e palavras
são calcinadas.
A
falência generalizada de livrarias faz soar o alarme, mas não percebemos nada.
O desprestígio das bibliotecas nos alerta, em vão. Bibliotecas servem para as
pessoas estudarem, em silêncio, concentradas nas páginas onde encontram
sabedoria. Abrigam quem queira recolher-se e pensar. Bibliotecas não são
acervos de livros, mas templos dedicados à postura essencial de ler, pensar e,
mais ainda, de encontrar pessoas para o diálogo. Sim, bibliotecas são lugares
de encontros. Como lugares de estudo, reservam salas para reuniões, onde os
frequentadores podem conversar em torno de ideias.
Hoje
essas duas potencialidades humanas, o recolhimento meditativo e o encontro
dialógico, estão amaldiçoadas. Nada parece ser mais ameaçador para o fanatismo
que aí está do que uma pessoa em silêncio com um livro diante dos olhos. Alguém
que pense por sua própria conta é alguém que, uma hora ou outra, vai inventar
de não obedecer. Onde é que já se viu? Mas além do pensamento, os piromaníacos
violentos têm medo do encontro. Temem o diálogo, que só se realiza quando os
pontos de vista não são coincidentes (só há diálogo porque há diferenças). Nada
os assusta mais que o encontro entre diferentes.
Pensar
é respeitar. Encontrar é desejar. Os brutos olham para isso e riscam o fósforo.
“Livros, livros, à mão cheia” – para avivar a churrasqueira.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
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