Urge
romper a promiscuidade entre o dia a dia da política e o gerenciamento dos bens
comuns
A
corrupção não aceita limites. Como água, penetra cada fresta em seu caminho.
Aliada ao poder, ganha mais força. No mensalão, desmoralizou a política e até
mesmo o PT, partido fundado em princípios. Na Lava-Jato, levou de roldão
algumas das maiores empresas do país. Na pandemia, conseguiu a incrível façanha
de enlamear as operações de saúde, comprometendo vidas aos milhares. Os casos
citados têm em comum o uso perverso das relações entre o público e o privado.
O
governo, que fala pelo bem comum, grande contratante que é, alia-se a empresas
particulares oportunistas para, juntos, gerarem vantagens ilícitas a cada
oportunidade. Como estancar esta patologia que nos sufoca e que leva o país a
um dos seus piores momentos?
Na
saúde, cresce a opinião contra as OS, como se nelas estivesse a falha do
sistema. Diversas vozes, do governo e da sociedade, levantam acusações contra
as OS e reclamam a volta à administração direta dos serviços de saúde. Falsa
solução, pois em todo o país, onde houve denúncias as secretarias de Saúde
foram destaque entre as agências corruptoras, com o respaldo de outros órgãos
estratégicos do Estado. Note-se inclusive que governos e municípios estimularam
o surgimento de OS venais, portadoras de CNPJ descartáveis, sem história e sem
valor próprio, criadas justamente para a rodagem das transações ilícitas.
Note-se ainda que a maior parte das compras escandalosas propiciadas pela crise
global da Covid-19 foram feitas diretamente pelos governos com empresas
oportunistas de variada procedência, nacionais e estrangeiras.
O
retorno dos serviços de saúde à administração direta não parece razoável,
sequer factível, mas não é este o objeto da discussão proposta neste texto.
Propõe-se aqui uma pergunta anterior, para que se reconsidere o relacionamento
entre governo e instituições privadas, sejam elas com ou sem fins lucrativos.
Como proteger os contratos, as compras de bens e serviços, das artimanhas da
política e da corrupção? A experiência recente mostra relações tão próximas e
intrincadas entre contratantes e contratadas que não há como distinguir entre
as partes. Relações de interesse atravessam os espaços e determinam as transações.
A política contamina a gestão. A continuidade dos serviços sofre com as
intrigas palacianas e de suas secretarias. O compromisso com a eficiência é
comprometido.
Urge
romper a proximidade promíscua entre o dia a dia da política e o gerenciamento
dos bens comuns. Consolidar instâncias intermediárias com qualidade técnica e
mandato próprio de média duração, protegidas das interferências diárias de
terceiros, políticos e empresários. Formar instâncias independentes que tenham
por missão zelar pela qualidade dos procedimentos. A contratação e o
acompanhamento de empresas terceirizadas, sejam elas com ou sem fins
lucrativos, carecem desta proteção. Os processos de seleção de novos gestores
devem ocorrer em ambiente autônomo, pois é lá, nas negociações iniciais, que as
primeiras chances de tramoia acontecem.
A
definição de objetivos e metas deve primar pela técnica, pois a defasagem entre
os objetivos contratuais e a prática da execução é fonte recorrente de passivos
que se tornam matéria a negociar por trás dos panos, os chamados “restos a
pagar”. O controle dos resultados carece de independência, pois a fiscalização
e as glosas são fonte repetitiva de impasses e microabsurdos que propiciam
soluções indevidas. O ajuste entre as grandes políticas e o planejamento
efetivo é objeto a ser tratado em câmara própria, que escape ao voluntarismo
fácil das pretensões eleitoreiras.
A
prática atual — em que o secretário é ao mesmo tempo contratante,
financiador, fiscalizador e provável candidato nas próximas eleições — forma
uma barafunda de interesses que é solo fértil para o manuseio criminoso dos
nossos bens maiores, como a saúde e a educação. Estados e municípios possuem
fundações especializadas, como da Saúde, por exemplo. Ao invés de voltarem a
serem administradoras diretas, confundindo de vez técnica, política e gestão,
as fundações poderiam ser repensadas de modo a se posicionarem como instâncias
intermediárias entre o governo e o mercado, com a missão precípua de zelar pela
correção das relações entre o público e o privado.
*Rubem César Fernandes é diretor executivo do Viva Rio
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