quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Rubem César Fernandes* - Público, privado e corrupção

- 0 Globo

Urge romper a promiscuidade entre o dia a dia da política e o gerenciamento dos bens comuns

A corrupção não aceita limites. Como água, penetra cada fresta em seu caminho. Aliada ao poder, ganha mais força. No mensalão, desmoralizou a política e até mesmo o PT, partido fundado em princípios. Na Lava-Jato, levou de roldão algumas das maiores empresas do país. Na pandemia, conseguiu a incrível façanha de enlamear as operações de saúde, comprometendo vidas aos milhares. Os casos citados têm em comum o uso perverso das relações entre o público e o privado.

O governo, que fala pelo bem comum, grande contratante que é, alia-se a empresas particulares oportunistas para, juntos, gerarem vantagens ilícitas a cada oportunidade. Como estancar esta patologia que nos sufoca e que leva o país a um dos seus piores momentos?

Na saúde, cresce a opinião contra as OS, como se nelas estivesse a falha do sistema. Diversas vozes, do governo e da sociedade, levantam acusações contra as OS e reclamam a volta à administração direta dos serviços de saúde. Falsa solução, pois em todo o país, onde houve denúncias as secretarias de Saúde foram destaque entre as agências corruptoras, com o respaldo de outros órgãos estratégicos do Estado. Note-se inclusive que governos e municípios estimularam o surgimento de OS venais, portadoras de CNPJ descartáveis, sem história e sem valor próprio, criadas justamente para a rodagem das transações ilícitas. Note-se ainda que a maior parte das compras escandalosas propiciadas pela crise global da Covid-19 foram feitas diretamente pelos governos com empresas oportunistas de variada procedência, nacionais e estrangeiras.

O retorno dos serviços de saúde à administração direta não parece razoável, sequer factível, mas não é este o objeto da discussão proposta neste texto. Propõe-se aqui uma pergunta anterior, para que se reconsidere o relacionamento entre governo e instituições privadas, sejam elas com ou sem fins lucrativos. Como proteger os contratos, as compras de bens e serviços, das artimanhas da política e da corrupção? A experiência recente mostra relações tão próximas e intrincadas entre contratantes e contratadas que não há como distinguir entre as partes. Relações de interesse atravessam os espaços e determinam as transações. A política contamina a gestão. A continuidade dos serviços sofre com as intrigas palacianas e de suas secretarias. O compromisso com a eficiência é comprometido.

Urge romper a proximidade promíscua entre o dia a dia da política e o gerenciamento dos bens comuns. Consolidar instâncias intermediárias com qualidade técnica e mandato próprio de média duração, protegidas das interferências diárias de terceiros, políticos e empresários. Formar instâncias independentes que tenham por missão zelar pela qualidade dos procedimentos. A contratação e o acompanhamento de empresas terceirizadas, sejam elas com ou sem fins lucrativos, carecem desta proteção. Os processos de seleção de novos gestores devem ocorrer em ambiente autônomo, pois é lá, nas negociações iniciais, que as primeiras chances de tramoia acontecem.

A definição de objetivos e metas deve primar pela técnica, pois a defasagem entre os objetivos contratuais e a prática da execução é fonte recorrente de passivos que se tornam matéria a negociar por trás dos panos, os chamados “restos a pagar”. O controle dos resultados carece de independência, pois a fiscalização e as glosas são fonte repetitiva de impasses e microabsurdos que propiciam soluções indevidas.  O ajuste entre as grandes políticas e o planejamento efetivo é objeto a ser tratado em câmara própria, que escape ao voluntarismo fácil das pretensões eleitoreiras.

A prática atual —  em que  o secretário é ao mesmo tempo contratante, financiador, fiscalizador e provável candidato nas próximas eleições — forma uma barafunda de interesses que é solo fértil para o manuseio criminoso dos nossos bens maiores, como a saúde e a educação. Estados e municípios possuem fundações especializadas, como da Saúde, por exemplo. Ao invés de voltarem a serem administradoras diretas, confundindo de vez técnica, política e gestão, as fundações poderiam ser repensadas de modo a se posicionarem como instâncias intermediárias entre o governo e o mercado, com a missão precípua de zelar pela correção das relações entre o público e o privado.

 *Rubem César Fernandes é diretor executivo do Viva Rio

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