Jornais
informam e informar é pôr em ação a igualdade de todos perante os eventos
engendrados por suas sociedades
Qual
é o papel do jornal na vida das sociedades? É óbvio que tudo começou em Roma,
mas só pode haver “jornal” quando há imprensa (um meio mecânico de múltipla
reprodução) e letramento.
Quando
uma população sabe ler e lê cotidianamente em busca de alento, de remédio e,
sobretudo, de informação e novidade. A palavra “newspaper” é significativa,
porque o jornal diário (o “daily news”) só pode existir num sistema em
constante mudança. O jornal foi o primeiro anunciante de novidades manifestas
ou bloqueadas em sociedades aristocráticas nas quais o ideal era a permanência
e o que não cabia nas normas era visto como intrigas, aleivosias, ladroagens,
segredos e fuxicos. O jornal “fura” ou abre o sistema inventando uma opinião
impessoal: a opinião pública.
Jornais
informam e informar é pôr em ação a igualdade de todos perante os eventos
engendrados por suas sociedades. Ou seja: o jornal é a grande vacina contra
fuxicos ou meias-palavras quando traz à luz do dia aquilo que os poderosos (ou
mandões, os ricos, as elites e as celebridades) fazem na escuridão de seus
privilégios e relações.
São os jornais, com seus “cadernos” e divisões, que articulam e legitimam que tal ou qual desastre, decreto, política, interesse e movimento pertence a este ou àquele domínio da realidade e quais são as suas implicações visíveis.
Nesse
sentido, se o jornal tem colunistas voltados para a intriga, ele tem também
colunas destinadas a dar sentido ao que o próprio jornal veicula. A primeira
página retorna na segunda, transcrita com menos estardalhaço e mais
compreensão. O fato chocante, irracional ou inusitado da manchete, reaparece
como algo plausível.
Uma
das maiores diferenças entre o livro e o jornal jaz nos elos entre a informação
e o modo como ela é impressa. Nos livros, não há letras “garrafais”, que
obrigam a focar um evento. Os destaques estão nos capítulos, mas não há,
tirando o título, uma manchete ou “primeira página” na qual se estampam eventos
capitais. Nessas “páginas de rosto”, eventos tornam-se episódios estruturais
justamente porque os jornais assim os classificam. Ademais, livros não falam
apenas do novo, mas – contrapondo-se aos jornais – elaboram questões
permanentes debaixo da imaginação dos seus autores. Jornais estampam o real;
livros, o ficcional. Ademais, o jornal é um produto estruturalmente coletivo e
os livros pertencem aos seus autores.
Os
primeiros escritos sagrados foram gravados em argila, mármore, bronze e, com
Gutemberg, massificados em papel. Foram, é claro, os códigos legais e os
mandamentos religiosos. O jornal tornou familiar aquilo que os livros isolavam
das rotinas comuns.
Os
jornais criaram o jornalismo e a imprensa inventou um quarto poder ao lado do
executivo, do judiciário e do legislativo. Eles são a porta da liberdade sem a
qual a democracia não seria possível.
Os
elos escusos, as negociatas – as intenções “impublicáveis” – são obviamente
elementos de controle do poder dos poderosos e indispensáveis instrumentos de
controle moral ou social. A relação entre “fuxico e escândalo” é – sem dúvida –
o cerne, se não a razão de ser do jornalismo no seu papel explícito de revelar
e de reforçar quem pertence à comunidade da qual o jornal é um “porta-voz” – ou
o anjo anunciador do que está oculto ou está por vir. O escândalo e a corrupção
definem um país. No nosso, os privilégios são responsáveis por vergonhosas
reversões morais.
Sou
de um tempo no qual todo mundo tinha medo de “sair no jornal”, pois a notícia
escrita num universo como o brasileiro, repleto de analfabetos natos, de burros
doutores e de jumentos pós-graduados, o jornal era mais um instrumento de
denúncias interessadas do que um veículo confiável e honrado de informações.
Nele, conforme me ensinou meu saudoso pai, havia uma chuva de novidades e os
filtros dos colunistas. Alguns devidamente nazificados pelo seu radicalismo,
muitos pela sua empáfia e ignorância, mas havia um punhado deles capazes de
intuir, explicar e informar o lugar social e político preciso do fato que a
primeira página estampava.
Papai
não era sociólogo, mas tinha o tirocínio e a sensibilidade para me ensinar como
os colunistas complementavam os repórteres e editores. E como o jornal
integrava a intimidade da casa (onde estavam os seus leitores diários e leais)
e o mundo insolente e inesperado da rua. Ele repetia: filho, jamais se esqueça
que você somente entende a manchete quando lê a coluna.
*É antropólogo social e escritor, autor de ‘Fila e Democracia’
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