quarta-feira, 17 de março de 2021

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

Novo ministro, velhos problemas – Opinião / O Estado de S. Paulo

O sucesso do novo ministro da Saúde depende não de suas qualidades, e sim da função que ele terá nos cálculos políticos de Jair Bolsonaro

O novo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, tratou logo de dizer a que veio: “A política (de saúde) é do governo Bolsonaro. A política não é do ministro da Saúde. O ministro da Saúde executa a política do governo”. Trata-se de uma versão mais polida da célebre frase do antecessor de Queiroga, Eduardo Pazuello, a respeito de sua atuação no Ministério: “É simples assim: um manda, o outro obedece”.

Mais do que isso: Queiroga disse que assumiu o cargo “para dar continuidade” ao trabalho de Pazuello, aquele que se limitava a cumprir as ordens absurdas do presidente Jair Bolsonaro – e que, talvez por isso mesmo, tenha sido considerado por seu chefe como um ministro da Saúde “excepcional”, um “tremendo gestor”.

Quando o “tremendo gestor” assumiu interinamente o Ministério da Saúde, em junho de 2020, o Brasil registrava cerca de 58 mil mortos pela covid-19; quando foi anunciada sua substituição, o País somava 279 mil mortos. Não se chega a esse macabro resultado sem muito empenho.

Se é a esse “trabalho” que o novo ministro da Saúde pretende dar continuidade, só resta rezar. Mas é preciso dar a Marcelo Queiroga o benefício da dúvida. Afinal, o novo ministro pelo menos é médico, uma das tantas competências que faltavam ao intendente Eduardo Pazuello. Sendo do ramo, é possível que Marcelo Queiroga tenha maior noção da urgência da vacinação, da abertura de leitos de UTI e da adoção de rígidas medidas de isolamento em quase todo o País.

Mas o sucesso do novo ministro depende não de suas qualidades, que ainda estão por ser conhecidas e testadas, e sim da função que ele terá nos cálculos políticos de Bolsonaro.

Sabe-se que o presidente não trocou de ministro da Saúde por livre e espontânea vontade. Muito pelo contrário: Eduardo Pazuello era o ministro ideal, por sua absoluta subserviência ao presidente.

Bolsonaro aceitou dispensar Pazuello por pressão do Centrão, que ora coloniza o governo. Multiplicam-se os sinais de que a crise causada pela pandemia, somada à volta à cena política do ex-presidente Lula da Silva, ameaça a reeleição de Bolsonaro – e não consta que o Centrão aceite se abraçar a quem está se afogando.

O presidente da Câmara, Arthur Lira, prócer do Centrão, chegou a avalizar uma candidata ao Ministério da Saúde, a cardiologista Ludhmila Hajjar, uma entusiasta da vacinação e de medidas de isolamento social contra a pandemia. Seria uma guinada e tanto no Ministério e no governo Bolsonaro, em linha com as demandas de Estados e municípios, desesperados ante a escalada da pandemia.

O desgaste do presidente na sua relação com governadores e prefeitos preocupa os governistas, que sabem que não se faz campanha eleitoral sem palanques regionais. Sem poder contar com o Ministério da Saúde, até agora incapaz de organizar a aquisição de vacinas, prefeitos se articularam em consórcio para obter os imunizantes – e a iniciativa, para a qual se esperava a adesão de cerca de cem prefeituras, atraiu até agora mais de 1,7 mil (24 delas capitais), representando nada menos que 60% da população brasileira.

Esse movimento dá a dimensão do risco de desidratação eleitoral de Bolsonaro. A tacada do Centrão para sanear o Ministério da Saúde serviria assim para apaziguar ânimos e desarmar discursos oposicionistas.

Mas o bolsonarismo é mais forte que o bom senso. Bolsonaro nunca esteve disposto a perder o controle sobre o Ministério da Saúde, entregando-o a algum ministro que contrariasse o discurso negacionista que o presidente e seus camisas pardas vociferam desde o início da pandemia. Aceitou conversar com a indicada do Centrão, mas levou para a reunião seu filho Eduardo Bolsonaro, que nada entende de saúde, mas entende tudo da bobajada ideológica que embala o bolsonarismo. A irracionalidade prevaleceu, e a candidata foi dispensada.

Resta esperar que o doutor Queiroga, a quem cabe a hercúlea tarefa de liderar o Ministério da Saúde em meio a uma pandemia que virou o Brasil do avesso, ao menos consiga mitigar os danos causados pelo obscurantismo bolsonarista. Já terá sido um grande feito.

Faltou pensar em 2021 – Opinião / O Estado de S. Paulo

Mortandade recorde e economia sem rumo compõem o balanço de um desastre político

O ministro da Economia, Paulo Guedes, corre atrás de R$ 453,7 bilhões para pagar salários, aposentadorias, precatórios e serviços essenciais – enfim, para manter o governo em funcionamento. Por meio de projeto de lei, ele tenta a liberação desse dinheiro antes da aprovação do Orçamento, já muito atrasada. As duas providências, a liberação da verba e a aprovação da lei orçamentária, dependem do Congresso. Ao mesmo tempo, a equipe econômica prepara medidas para atenuar os efeitos de cortes de jornada e de salário e suspensões de contratos. “Bolsa Emergencial” deve ser o nome desse pacote. Mas isso era emergencial no ano passado. Todas essas manobras apenas confirmam três qualidades já exibidas muitas vezes por esse governo: imprevidência, incapacidade administrativa e incompetência política para garantir o exercício das funções públicas.

Não é novidade, no Brasil, o atraso na aprovação do Orçamento. Mais de uma vez o governo foi obrigado, no começo do ano, a limitar seus gastos à espera da votação final da lei orçamentária. Mas o cenário econômico e fiscal era muito menos nebuloso. A pandemia, dirão os mais complacentes, torna mais difícil qualquer previsão. É verdade, mas o Executivo deveria ter levado em conta esse fator, no ano passado, no momento de programar o roteiro de 2021. Nem o risco da pandemia foi considerado, nem se planejou a vacinação, nem se considerou a hipótese de dezenas de milhões de famílias forçadas a uma desastrosa redução do consumo por falta de dinheiro.

O Ministério da Economia projetou o Orçamento como se a continuação da retomada estivesse garantida, neste ano, mesmo sem auxílio emergencial, sem apoio fiscal às empresas, sem medidas de sustentação de empregos e sem estratégia de crescimento. As famílias, disseram alguns membros da equipe econômica, usariam para consumo o dinheiro poupado em 2020, na fase de maior restrição. Essa ideia foi repetida há poucos dias. Dinheiro tem saído da poupança de fato, mas a explicação mais evidente é pouco animadora. Poupadores estão sacando principalmente para sobreviver, porque o desemprego continua alto e o orçamento está muito apertado.

O governo nem previu os desafios de 2021, sanitários e econômicos, nem desenhou cenários críveis de evolução dos negócios, nem explicou como poderia combinar o ajuste fiscal com a reativação da economia. Partem da área econômica, de vez em quando, manifestações de sensatez. Isso ocorre, por exemplo, quando o secretário do Tesouro mostra o buraco das contas oficiais, lembra o enorme endividamento público e aponta as necessárias limitações das despesas. Mas não se observam ações articuladas em favor da seriedade fiscal e da maior eficiência administrativa.

Em vez de fixar prioridades sérias, definir políticas críveis para este ano e buscar apoio à estratégia fiscal e a um programa de crescimento, o Executivo se voltou para interesses eleitorais. O presidente da República e parlamentares aliados perderam tempo em busca de fórmulas para converter o auxílio emergencial num Bolsa Família com a marca de Jair Bolsonaro.

Faria sentido, naquele momento, buscar meios de prolongar e intensificar a recuperação. Seria mais fácil encontrar uma solução conjuntural e, mais tarde, pensar em algo mais ambicioso. Mas o presidente estava cuidando de sua reeleição em 2022. Interesses mais amplos nunca apareceram no topo de sua agenda. Como a equipe econômica foi incapaz de propor um programa sério e de engajar o presidente em sua execução, meses foram perdidos e problemas de novo se amontoaram.

Enquanto o governo derrapava na economia, o sistema federal de saúde afundava na incompetência e na irresponsabilidade. O atraso na compra de vacinas, o negacionismo, a insistência na cloroquina e o desprezo à vida alheia tiveram como contrapartida recordes de contaminação e de mortes. O governo falhou na economia e na saúde. Atividade emperrada, incerteza nos mercados, desemprego persistente, hospitais lotados e funerárias sobrecarregadas são partes do mesmo quadro.

Risco de retrocesso na Bolívia – Opinião / O Estado de S. Paulo

Em vez de diálogo e reconciliação, o revanchismo político prevalece na Bolívia

Após as eleições nacionais de 2020, a democracia boliviana parecia estar entrando nos eixos. Com a vitória em um pleito limpo reconhecido pelos principais protagonistas políticos bolivianos, esperava-se que o novo presidente, Luis Arce, do partido de Evo Morales, Movimento ao Socialismo (MAS), adotasse uma postura pragmática e unisse forças contra a crise pandêmica. Mas a esperança durou pouco. Algumas semanas após a posse dos novos mandatários, a Justiça boliviana, há muito colonizada por correligionários de Morales, expediu uma bateria de ordens de prisão contra autoridades que pressionaram pela renúncia de Morales em 2019 e participaram do governo interino.

A crise remonta a 2016, quando o povo em referendo, corroborando o texto constitucional, disse não a uma quarta postulação de Morales à presidência, onde estava desde 2006. Ainda assim, por meio de manobras nas Cortes, Morales concorreu em 2019. Na noite das eleições, houve um súbito blackout no sistema de apuração, e poucas horas depois o Órgão Eleitoral anunciou a vitória de Morales.

Em extensa auditoria, a Organização dos Estados Americanos (OEA) comprovou a manipulação dolosa das urnas. Por três semanas recrudesceram protestos nas ruas, levando o país à beira do caos. Em nota, oficiais das Forças Armadas sugeriram que Morales renunciasse a fim de permitir a pacificação do país. Após consultar aliados nas centrais sindicais, bases políticas e a Igreja católica, Morales renunciou e se refugiou no exterior.

As autoridades na linha sucessória – o vice-presidente e os presidentes governistas do Senado e da Câmara – também renunciaram, acusando um golpe de Estado. Coube a Jeanine Áñez, a segunda vice-presidente do Senado, assumir a presidência. O governo interino foi aprovado por unanimidade pela Assembleia Legislativa – de maioria do MAS, cuja bancada aceitou incontinenti a renúncia de Morales – e foi reconhecido pela OEA, ONU, União Europeia, EUA e outros países.

Agora, lideranças das Forças Armadas, da polícia e do governo de transição foram presas sob acusação de terrorismo, sedição e conspiração. O diretor da Humans Right Watch para as Américas, José Miguel Vivanco, declarou que as ordens de prisão não contêm evidências de atividades terroristas, “levantando dúvidas justificadas de que é um processo baseado em motivos políticos”. O secretário-geral da ONU, António Guterres, pediu que as autoridades da Bolívia consolidem a paz e respeitem o devido processo legal. O representante da União Europeia para assuntos exteriores, Josep Borrell, pediu “diálogo e reconciliação”. Apesar dos apelos, a máquina de retaliação política opera a todo vapor.

Se não se pode dizer que seja uma surpresa, dados os padrões históricos da república boliviana, não deixa de ser uma pena. Quando Arce foi eleito, Áñez e a oposição reconheceram imediatamente a sua legitimidade. O porta-voz do MAS declarou que o partido pretendia retificar os erros do passado e que o estilo do novo governo seria outro, mais aberto ao diálogo com a oposição.

Arce tem um perfil técnico e foi o principal arquiteto do bom desempenho econômico do país na gestão de Morales. Tudo indica que, ao elegê-lo, os bolivianos optaram por preservar o melhor da política econômica de Morales, rejeitando o pior de seu caudilhismo. A cicatrização política seria mais do que nunca necessária. A Bolívia foi um dos países mais impactados do mundo pela crise sanitária e econômica e tem desafios crônicos reconhecidos tanto pela direita como pela esquerda, como o combate ao narcotráfico e a exportação de commodities. São elementos mais do que suficientes para construir uma agenda comum.

Mas o revanchismo prevaleceu. Não só os membros da oposição estão sendo perseguidos, como o governo decretou anistia a Morales e centenas de seus partidários radicais acusados de delitos graves durante a crise social de 2019. 

É um lugar-comum, muito repetido nestes tempos, que toda a crise gera oportunidades. Mas o governo boliviano está desperdiçando as suas da maneira mais catastrófica. 

Mordaça federal – Opinião / Folha de S. Paulo

Governo toma medidas inquietantes para regular produção intelectual de servidor

Episódios recentes em órgãos federais atestam o ânimo incessante do governo Jair Bolsonaro de fustigar as liberdades e o conhecimento.

Apenas neste mês de março, casos inquietantes foram registrados na Universidade Federal de Pelotas, no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e no Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).

Na instituição de ensino superior, foram abertos processos para investigar professores que criticaram o presidente em evento transmitido pela internet; no instituto da área econômica, emitiu-se comunicado interno prevendo sanções a pesquisadores que divulguem estudos sem autorização.

Já no órgão ambiental, uma portaria passou a obrigar, a partir de abril, que a produção científica de seus quadros seja aprovada por uma diretoria antes de publicada.

Em Pelotas, as investigações foram iniciadas pela Controladoria-Geral da União com base no pressuposto de que os docentes proferiram “manifestação desrespeitosa e de desapreço direcionada ao presidente da República”.

Dois docentes, que criticaram o fato de a escolha do reitor pelo presidente não ter confirmado o nome internamente mais votado, se viram obrigados a assinar termos de ajustamento de conduta.

O Ministério da Educação, no mês passado, já havia encaminhado às universidades federais ofício —depois cancelado— solicitando providências para “prevenir e punir atos político-partidários”.

As medidas no âmbito universitário não são compatíveis com o entendimento do Supremo Tribunal Federal, que determinou a inconstitucionalidade de atos que atentem contra a liberdade de expressão e promovam o cerceamento ideológico em instituições de ensino.

No que tange ao Ipea e ao ICMBio, seria mais que razoável a preocupação com os corretos procedimentos para a produção intelectual de seus servidores —mas as providências tomadas parecem mais intimidação e tentação censória.

É preciso assegurar a liberdade, a autonomia e a diversidade de pensamento nos órgãos de Estado, que não deve se confundir com a politização indevida e o aparelhamento da máquina pública.

É notório que o governo Bolsonaro tem atuado com intolerável viés ideológico na área educacional e científica. As consequências desastrosas que se verificam no combate à pandemia de Covid-19 são uma evidência dessa tendência obscurantista. Sempre pronto a rejeitar o uso da máscara protetora, o atual mandatário mostra-se um entusiasta das mordaças.

Padrão 'rachadinha' – Opinião / Folha de S. Paulo

Contas de ex-assessores na Câmara ampliam suspeitas sobre Bolsonaro e família

Desde que vieram à tona os primeiros indícios de que havia algo estranho na movimentação financeira do policial aposentado Fabrício Queiroz, faz-tudo do presidente Jair Bolsonaro e de sua família, as desconfianças só aumentam.

No ano passado, promotores acusaram o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) de liderar um esquema de desvio de milhões de reais da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro nos anos em que ele foi deputado estadual.

Após uma devassa nas contas de Flávio e dezenas de ex-funcionários, o Ministério Público apontou evidências de que o filho mais velho do presidente usara salários dos servidores para pagar despesas pessoais e comprar imóveis.

Em fevereiro, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça atendeu a um pedido do senador e anulou a decisão da primeira instância que autorizara a quebra do sigilo das suas contas, pondo em xeque o futuro da investigação.

Na segunda (15), soube-se que as informações obtidas pelos promotores comprometem não apenas Flávio, mas o próprio presidente.

Como revelou o UOL, os dados mostram que quatro ex-assessores do gabinete que Bolsonaro ocupou na Câmara dos Deputados antes de chegar ao Planalto tinham o hábito de sacar em espécie a maior parte de seus vencimentos.

Isso leva à suspeita de que ocorriam ali também desvios como os encontrados pelos promotores na Alerj, onde um padrão de retiradas de dinheiro vivo e transferências incomuns foi associado ao esquema das “rachadinhas”.

Reportagem publicada pela Folha no ano passado já havia detectado movimentos inexplicáveis no antigo gabinete de Bolsonaro, com alta rotatividade de assessores, alguns demitidos e recontratados no mesmo dia com salário maior.

São indícios suficientemente fortes para justificar uma investigação sobre as práticas adotadas ali. O fato de que nada tenha sido feito até hoje é apenas mais uma demonstração da tibieza do procurador-geral da República, Augusto Aras.

É possível que as decisões do STJ no caso de Flávio prejudiquem de forma irremediável os esforços para investigá-lo. Mas cabe ao Ministério Público fazer seu trabalho e buscar novos elementos para esclarecer as suspeitas sobre a família.

A Constituição impede que Bolsonaro seja processado por atos estranhos às suas funções como presidente da República, mas isso não significa que não possa ser investigado por eventuais crimes do passado e responsabilizado após deixar o cargo. Para isso, basta seguir as pistas à vista de todos.

Nova reforma política seria um retrocesso – Opinião / O Globo

Logo que assumiu a presidência da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) criou um grupo de trabalho para tratar de uma nova reforma política, que poderá causar danos graves ao sistema eleitoral brasileiro. A deputada bolsonarista Bia Kicis (PSL-DF), nova presidente da estratégica Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), já colocou tais propostas na lista de prioridades para análise a partir desta semana, ao lado da reforma administrativa.

Enquanto esta é absolutamente necessária e urgente, o Brasil decididamente não precisa de outra reforma política neste momento. Basta continuar implementando as mudanças já aprovadas em 2017, como o fim das coligações partidárias em pleitos proporcionais (para deputados federais, estaduais e vereadores) e a cláusula de desempenho (que estabelece percentuais mínimos de votação para partidos terem direito a representação).

É grande a possibilidade de mais uma vez tentarem substituir o sistema proporcional de votos pelo monstrengo conhecido como “distritão”, em que os candidatos concorrem entre si e são eleitos os mais votados, sem nenhum tipo de critério partidário. Quando Eduardo Cunha (PMDB-RJ) presidia a Câmara, bateu-se por uma emenda constitucional que criava o “distritão”. Não conseguiu o mínimo de 308 votos exigidos para aprová-la. Agora, o perigo volta ameaçar a política brasileira.

Em artigo na “Folha de S.Paulo”, o cientista político Jairo Nicolau, da FGV-Rio, critica a intenção de substituir “o melhor sistema eleitoral da nossa história” pelo “distritão”, o pior de todos os sistemas eleitorais, segundo enquete com 169 cientistas políticos. A ideia de transformar cada estado num superdistrito seria, diz Nicolau, um modo eficaz de acabar com os partidos, base da democracia representativa. Trata-se do modelo perfeito para eleger celebridades como youtubers, radialistas, atores, atletas ou lideranças religiosas. A política passaria a ser ainda mais exercida de forma personalista por “puxadores de voto”. Daí os defensores do “distritão” serem políticos com estrutura própria de captação de apoio, “com grande crença na probabilidade de vitória”. Quanto ao eleitor, se não votar em vitorioso, jogará o voto fora, pois ele não será mais transferido dentro da legenda do candidato.

Outro risco é o apoio de Lira ao pleito dos pequenos partidos que querem a volta das coligações nas eleições proporcionais e o fim da cláusula de desempenho. As alianças foram suspensas desde as eleições municipais do ano passado, para respeitar a destinação que o eleitor dá ao voto. A cláusula de barreira começou a vigorar em 2018, com a exigência de 1,5% dos votos à Câmara, distribuídos por ao menos nove estados (com 1% em cada um deles). Chegará em 2030 a 3% dos votos, com 2% em nove estados. Sem atingir esses limites, os partidos perdem as cadeiras. Como prova da eficácia da medida, Nicolau destaca que, na eleição municipal, dos 32 partidos registrados, 23 puderam usar recursos do fundo partidário, e os 9 que não haviam atingido a cláusula em 2018 receberam valores menores.

A comissão criada por Lira abre caminho a novo retrocesso, com o risco de pulverizar ainda mais o quadro partidário, degradar a representatividade, prejudicar a governabilidade e lubrificar esquemas fisiológicos. A CCJ da Câmara e o Congresso deveriam esquecer as propostas de reforma política. Têm muito mais o que fazer.

Desafio de Queiroga na Saúde é resistir aos delírios bolsonaristas – Opinião / O Globo

Depois do desastre da gestão Eduardo Pazuello, a mudança no Ministério da Saúde é bem-vinda. O cardiologista Marcelo Queiroga, quarto ministro a ocupar a pasta durante a maior pandemia em cem anos, herda um legado caótico: mais de 282 mil mortos pela Covid-19, um sistema de saúde em colapso e um programa de imunização claudicante.

Próximo da família Bolsonaro, ele tem credenciais relevantes: presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia, incentiva a vacinação, defende as máscaras, o distanciamento social e já se manifestou contra o uso da cloroquina para tratar Covid-19, embora suas declarações a respeito tenham sido ambíguas (diz que médicos podem prescrever tratamentos, mesmo sem eficácia comprovada). Num governo em que o presidente Jair Bolsonaro já insinuou que quem tomasse vacina poderia virar jacaré, não é pouco.

Queiroga também satisfaz ao critério que se tornou nova palavra de ordem entre os bolsonaristas: disse ser radicalmente contra lockdowns e criticou medidas de restrição mais duras adotadas em estados e municípios para deter o vírus. O simples fato de ser médico e de ter uma reputação a zelar na área da Saúde já o distancia de Pazuello. Há um limite àquilo a que pode se sujeitar.

A nomeação marca uma inflexão positiva na visão de Bolsonaro em relação à pandemia: a compreensão da importância da vacinação (ele até decidiu entrar na fila para se vacinar). A principal missão de Queiroga será turbinar o Programa de Imunização, que avança a conta-gotas. O ministério afirma ter contratado 545 milhões de doses, em tese suficientes para vacinar a população. Só que quase todas ainda estão voando. Na mão mesmo, há 25 milhões em março. A partir do mês que vem, quando a Fiocruz aumentar a produção e quando começarem a chegar novas remessas, o fluxo deverá crescer.

Na situação de calamidade em que Queiroga assume, há muito mais a fazer. É urgente melhorar o diálogo com governadores, prefeitos e secretários de Saúde, que enfrentam um incontestável colapso nas redes de saúde. Também é essencial aumentar o número de leitos no SUS, porque as filas só fazem aumentar, e pacientes estão morrendo antes de conseguir atendimento.

O maior desafio do novo ministro será conciliar tais necessidades aos humores e inclinações políticas do chefe. O principal risco não está no ministério, mas no Planalto. De nada adiantarão ideias sensatas se Bolsonaro sabotar Queiroga como fez com Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich.

Viu-se uma amostra do que o bolsonarismo é capaz na reação virulenta das tropas de assalto das redes sociais contra a médica Ludhmila Hajjar, indicada do presidente da Câmara, Arthur Lira, e do Centrão ao cargo. Suas credenciais e sua sensatez eram mesmo incompatíveis com Bolsonaro, mas a perseguição a que foi submetida é inaceitável. Queiroga terá de se equilibrar entre os delírios do bolsonarismo e a urgência de ampliar a vacinação e implantar medidas drásticas para deter o vírus. Espera-se que saiba resistir. Não faria sentido mudar para não mudar.

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