Meu
senso de antropólogo cultural antigo e de não especialista (hoje, o Brasil é a
pátria desses maravilhosos profissionais) prevê que teremos múltiplas vacinas
contra o competidor biológico maior, a Covid-19, com suas famílias e linhagens
que o governo Bolsonaro incrementa por meio de um pueril negacionismo e por uma
adulta e criminosa sabotagem.
O
vírus, não custa repetir, além de ser um agente epidêmico mortal e sem
intenções (exceto sobreviver), é — tal como as nossas elites, de que somos
parte e parcela — um predador invisível e solerte.
Aliás,
conforme escreveu um “especialista” chamado Charles Darwin, no mundo natural,
além de uma perturbadora ausência de intenção (ou causa final) e de uma óbvia
presença de oportunidade, quem melhor se adapta e mais se reproduz triunfa.
O significado dessa desgraçada vitória, devo logo dizer antes que me levem à guilhotina moral, é a grande questão do nosso mundo, já que, de modo claro, ela suprime um outro mundo, uma outra vida e — quem sabe? — engendra uma história alternativa...
Se
levamos a sério as premissas darwinistas, cabe honrar ao menos “este mundo” de
que estamos certos e onde atuamos. Pois o fato inexorável é o seguinte: se tudo
ocorreu ao acaso num planeta igualmente singular, posto que ele próprio é
“vivo”, o sentido final da existência não precisa ser justificado por uma outra
vida. Ela tem que fazer sentido aqui e agora, como demandam o vírus, os
sanitaristas e todos os inesperados. Acima de tudo, os inesperados
paradoxalmente previstos (e planejados) dos abismos entre quem tem demais e os
despossuídos.
Não
é preciso ser um sábio para dirimir os abismos sociais do Brasil. Eles saltam
aos olhos quando saímos de casa — se casa temos...
Nesta
etapa antropocênica — em que a pandemia impede, entre outras dimensões, que
se possam disfarçar as imensas desigualdades mundiais, os vergonhosos abismos
sociointelectuais nacionais e os transtornos de um planeta agredido por
“empreendedores” esquecidos de que são por ele englobados e foram por ele
engendrados —, não há a menor dúvida de que a espécie triunfante, o Homo
sapiens, é ao mesmo tempo Deus e algoz do mundo que habita e dele mesmo.
Diz
um celebrado mestre-pensador (Claude Lévi-Strauss) que, graças à invenção da
linguagem articulada e dos costumes, somos um superpredador com um trajeto
semelhante ao do câncer, porque conseguimos uma multiplicação além da Bíblia.
Hoje somos onipresentes. A onisciência e a onipotência que nos tornariam
divinos está em nossa volta e se afirmam nos laboratórios e nas “armas de
destruição em massa”, esse eufemismo para artefatos com o poder de simplesmente
assassinar o planeta em nome de alguma desavença nacional!
Avaliando
com minha óbvia insuficiência essas pressões, tenho, não obstante, um temor de
idoso: imagino, conforme confesso ao meu filho Renato, um consumado biólogo,
pesquisador e professor universitário, que o vírus pode ter vindo para ficar.
O
que significa esse “ficar” quando o ideal de conforto, satisfação e dignidade
depende de um rude individualismo (primeiro eu, depois os meus e em seguida
quem pensa e faz como eu!) — uma consciência do mundo que convenientemente
inibe reciprocidades, interdependências e só imagina o outro como adversário ou
inimigo a ser eliminado (ou cancelado, como se diz atualmente)?
Não
deixa de ser paradoxal que o lado mais perturbador do vírus seja sua potência
de bloquear o que nos tornou humanos: a sociabilidade ancorada na presença do
outro. A dialética da costumeiro e do exótico — do encontro interessado ou
espontâneo. Enfim, o que originou as grandes descobertas, inclusive a desses
bichos invisíveis que existem ao nosso lado e interagem conosco porque são tão
antigos quanto nós.
A
habitual negação e a sabotagem do vírus no Brasil — cujo maior responsável é
uma atitude emocional e irracional do presidente Bolsonaro e de seus seguidores
—não são só um ato de desgoverno desses que permeiam e estruturam a admiração
nacional desde que nos entendemos como um coletivo; são um risco para a
Humanidade.
Certo
que Adão não foi criado no Brasil, mas é igualmente verdadeiro que a Humanidade
pode ser radicalmente ameaçada a partir de nossa cuidadosa e precisa
negligência negacionista. De nossa incapacidade de realizarmos uma leitura mais
abrangente de nosso lugar na Terra.
Enfim,
se não nos conscientizarmos do perigo que estamos causando a todo o planeta; se
não nos dermos conta de que o vírus impede o comércio, a aliança, a troca em
todos os seus níveis que nos fizeram humanos, então vamos virar jacarés.
Cumpriremos um dos mais devastadores vaticínios do mais insensível presidente da nossa história.
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