São
“parasitas” que estão matando o “hospedeiro”? A sentença emitida por Paulo
Guedes, como quase tudo que fala o já não tão poderoso ministro, é uma
generalização estúpida. Nas suas desigualdades internas, o funcionalismo
público é quase um microcosmo do conjunto da sociedade brasileira. Mas sua
elite forma, de fato, uma casta aristocrática que extrai recursos vitais dos
brasileiros comuns, amplificando a concentração de renda.
A
casta está incrustada no funcionalismo federal: segundo o Ipea, em 2017, os
servidores municipais tinham salário médio de R$ 2,9 mil, contra R$ 5 mil dos
estaduais e R$ 9,2 mil dos federais. O Congresso e, especialmente, o Poder
Judiciário formam os ecossistemas da casta: no Executivo, o holerite médio era
de R$ 3,9 mil, contra R$ 6 mil dos funcionários do Legislativo e R$ 12 mil dos
servidores do Judiciário.
Raymundo
Faoro iluminou, nos idos de 1958, a relação intrínseca entre o poder estatal e
o estamento dos servidores públicos. A conversão patrimonial do bem nominalmente
público em propriedade privada — a prática sistemática de “tosquiar” a
sociedade — expressa-se, entre tantas formas, na remuneração da casta. Os
funcionários federais ganhavam, em média, 96% mais que os trabalhadores de
empresas privadas, sempre em 2017. No Judiciário, 4,2% dos funcionários
recebiam salários superiores a R$ 30 mil.
Getúlio Vargas esculpiu a transição para a economia urbano-industrial criando a moderna burocracia estatal e lançando as sementes da casta. Os filhos dos fazendeiros tornaram-se bacharéis. O PT, partido apoiado nos sindicatos de servidores, completou a obra varguista. Nos governos Lula e Dilma, o gasto com pessoal saltou de cerca de R$ 200 bilhões para mais de R$ 300 bilhões, já descontada a inflação.
O
país existe para servir os servidores? Em 2019, o Brasil gastou 12,9% do PIB
com o funcionalismo, um dos maiores dispêndios do planeta, superior ao do
Canadá (12,1%) ou da França (11,8%), para não mencionar Reino Unido (9%), EUA
(8,7%), Alemanha (7,6%) ou Chile (7,1%). Só o Judiciário — e sem contar o MP —
consumiu 1,5% do PIB, um assalto à arca pública que fica evidente no cotejo com
Itália (0,18%), França (0,15%) ou EUA (0,14%). Por aqui, terra de fidalgos
togados, o vale-refeição dos juízes supera o salário mínimo em 24 das 27
unidades da Federação.
O
lulismo impulsionou a casta a um novo patamar — e seus arautos nem sequer
admitem a discussão de uma reforma administrativa capaz de limitar as rendas
públicas destinadas a sustentar seus privilégios. O sociólogo Jessé Souza, o
mais autêntico formulador da visão lulista sobre o Estado e a sociedade no
Brasil, sintetizou a alegação da casta na seguinte sentença: “Os bancos querem
enxugar os gastos do Estado, para que o Estado possa ter seu orçamento dirigido
aos bancos”. Ficamos sabendo, então, que, segundo Jessé, propor uma reforma
administrativa implica defender os interesses dos bancos.
A
técnica de acusar o interlocutor de nutrir maléficas motivações ocultas, típica
de espíritos autoritários, destina-se a circundar a argumentação histórica e
factual, substituindo o debate informado por um torneio de insultos. Na maioria
das nações democráticas, governos de diversos matizes políticos evitaram que a
alta burocracia de Estado abocanhasse parcela da riqueza nacional similar à que
alimenta a “nossa” casta. Seriam todos esses governos meros agentes do capital
financeiro?
Na
base do funcionalismo, especialmente nos níveis estadual e municipal,
encontra-se a parcela dos servidores públicos de maior valor social. São, em
grande parte, funcionários mal-remunerados da saúde e da educação que atendem à
população de baixa renda. É a casta, não os malvados banqueiros, que desvia
para si mesma os recursos necessários para a qualificação e modernização dos
serviços públicos universais.
Uma
reforma administrativa equilibrada — que, obviamente, não é a de Paulo Guedes —
interessa à maioria dos brasileiros. Pena que, 90 anos depois de Vargas, os
representantes políticos da casta ainda consigam se fantasiar como amigos do
povo.
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