segunda-feira, 31 de maio de 2021

Poesia | Ferreira Gullar - Digo sim

Poderia dizer 

que a vida é bela, e muito, 

e que a revolução caminha com pés de flor 

nos campos do meu país, 

com pés de borracha 

nas grandes cidades brasileiras 

e que meu coração 

é um sol de esperanças entre pulmões 

e nuvens 

Poderia dizer que meu povo 

é uma festa só na voz de 

Clara Nunes 

no rodar 

das cabrochas no carnaval 

da Avenida. 

Mas não. O poeta mente. 


A vida nós amassamos em sangue 

e samba 

enquanto gira inteira a noite 

sobre a pátria desigual. A vida 

nós a fazemos nossa 

alegre e triste, cantando 

em meio à fome 

e dizendo sim 

- em meio à violência e a solidão dizendo 

sim - 

pelo espanto de beleza 

pela fama de Tereza 

pelo meu filho perdido 

neste vasto continente 

por Vianinha ferido 

pelo nosso irmão caído 

pelo amor e o que ele nega 

pelo que dá e que cega 

pelo que virá enfim, 

não digo que a vida é bela 

tampouco me nego a ela: 

- digo sim 

Ferreira Gullar, em "Na vertigem do dia", 1980.

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