- Valor Econômico
Esquerda
e direita se aglomeram em nome da política
E
o povo voltou para as ruas. Abandonando as recomendações da ciência de que é
preciso evitar aglomerações a fim de se evitar uma terceira onda da covid,
milhares de pessoas lotaram as cidades do país nos dois últimos fins de semana
em nome da política.
Embora
o senso comum atribua ao brasileiro uma natureza passiva e conformista, não
foram poucos os episódios de nossa história em que a população se indignou e se
mobilizou em massa reivindicando mudanças. Das revoltas populares no Império
(Cabanagem, Balaiada, Sabinada, Farroupilha), passando pela Revolta da Vacina
(1904), as greves operárias na década de 1920, os movimentos a favor e contra a
ditadura militar (1964-1968) e chegando mais recentemente às Diretas Já (1984)
e ao impeachment de Collor (1992), milhares ou milhões marcharam em favor de
causas variadas.
Esquerda
e direita se aglomeram em nome da política
Em junho de 2013, porém, algo diferente aconteceu. Sua dinâmica e sobretudo suas consequências ainda são motivo de estudos e controvérsias, mas o fato é que, articuladas nas redes sociais, as manifestações cresceram em número de participantes, abrangência territorial e diversidade de reivindicações, numa velocidade sem precedentes em nossa história.
O
gigante acordou a partir de uma proposta de aumento de 20 centavos na tarifa de
transporte público no município de São Paulo - mas é óbvio que não se tratava
apenas disso. Os protestos por aqui repercutiam um espírito dos novos tempos,
inspirados na Primavera Árabe e nos movimentos Ocuppy surgidos nos Estados
Unidos e na Europa na esteira da grave crise financeira de 2008-2010.
Durante
duas semanas, justamente quando o país se preparava para receber a Copa das
Confederações (evento teste para a Copa do Mundo de futebol de 2014) milhões
saíram às ruas de mais de 500 municípios e sacudiram o país, com efeitos
sentidos até hoje.
Junho
de 2013 talvez tenha sido a última vez em que pessoas de esquerda e de direita,
progressistas e conservadores, estiveram lado a lado reivindicando mudanças na
política brasileira. Também havia uma ampla diversidade de segmentos sociais:
contingentes expressivos do chamado “precariado”, de uma “nova classe média”
que havia ascendido economicamente e da classe média tradicional mostravam-se
insatisfeitos, cada qual com seus argumentos, com um Estado que entregava
serviços públicos de péssima qualidade e uma elite política que não mais os
representava.
Circunstâncias
especiais contribuíram para o ineditismo do movimento. Sem lideranças claras,
com uma pauta difusa e refutando a presença de partidos, sindicatos e políticos
tradicionais, as pessoas se sentiram confortáveis a aderir às passeatas sem
serem rotuladas como seguidora dessa ou daquela corrente. E assim a promessa de
que “amanhã vai ser maior” se cumpriu dia após dia.
As
jornadas de junho desapareceram da mesma forma surpreendente com que surgiram.
De lá para cá, porém, os brasileiros parecem ter retomado o gosto pelas
manifestações de rua. Suas características alteraram-se radicalmente, contudo.
Os
motivos deixaram de ser genéricos e tornaram-se muito bem definidos.
Protestou-se contra a corrupção sistêmica revelada pela Operação Lava-Jato,
pelo impeachment de Dilma, contra o golpe do impeachment de Dilma e também em
oposição aos cortes de recursos para a educação - e mais recentemente a
pandemia ensejou manifestações daqueles que se opõem às medidas de restrição à
circulação de pessoas e, ontem, contra a gestão da crise de saúde pelo governo
federal. E por trás das justificativas para cada uma dessas demonstrações
populares havia objetivos políticos também bem específicos, capitaneadas por
movimentos de esquerda ou de direita.
Muitos
analistas apontam os protestos de 2013 como a origem da crescente polarização
que desde as eleições de 2014 divide o país. Ao refutarem a configuração do
sistema político brasileiro, questionando a representatividade dos partidos e
da classe dirigente, abriu-se a caixa de Pandora. A agenda da melhoria da
qualidade dos serviços públicos deu lugar à negação da política como
instrumento de mediação e ao questionamento dos valores democráticos duramente
reconquistados com a Nova República.
Com
o agravamento da pandemia e sua consequente queda de popularidade, Bolsonaro
tem fomentado recorrentemente manifestações públicas como tentativa de
demonstrar força e apoio social. Seja a pé ou montado a cavalo, sobrevoando de
helicóptero ou acelerando uma motocicleta, o presidente estimula aglomerações
defendendo o fim do distanciamento social para evitar o desemprego e a fome.
Embora não se duvide que uma parte considerável do público presente a esses
eventos se preocupe com os efeitos econômicos e sociais do fechamento do
comércio, por trás do discurso de Bolsonaro há um objetivo meramente político e
eleitoral.
A
gravidade da pandemia, com suas mais de 460 mil mortes e ondas intermináveis de
contaminação, dificultava a resposta de seus opositores. Afinal, seria
contraditório promover a mobilização de pessoas quando era essa uma das
principais críticas ao comportamento irresponsável do presidente. As milhares
de pessoas que lotaram praças e avenidas de dezenas de cidades brasileiras no
último sábado comprovaram, porém, que temem mais a política de Bolsonaro do que
o risco de contaminação pela covid.
As
manifestações de sábado foram um legítimo grito de indignação contra a gestão
deplorável da pandemia por parte do governo federal. No entanto, apesar de não
ter tido candidato discursando nos palanques, pelos movimentos que a
organizaram e as bandeiras e camisas envergadas por boa parte dos presentes,
elas tinham cor e inclinação política muito bem definidas.
As
jornadas de maio de 2021 inauguram o início oficial da disputa eleitoral do ano
que vem - ou pelo menos o momento em que a campanha, seja de motocicleta ou a
pé, começa a tomar de modo antecipado as ruas do país.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”
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