- O Globo
Muitas dúvidas,
de diversas naturezas, cercaram a organização dos atos deste 29 de maio,
convocados por múltiplas organizações, diversos partidos e diferentes correntes
políticas, pelo impeachment de Jair Bolsonaro e exigindo responsabilização do
presidente e de seu governo pela decisão de não comprar vacinas contra o novo
coronavírus, o que agravou a pandemia de covid-19 no Brasil.
Já na segunda-feira passada escrevi a esse respeito, apresentando os dilemas colocados para os cientistas, para os políticos que até então vinham apontando o negacionismo de Bolsonaro e as aglomerações por ele incentivadas, e para a imprensa. Mas a oposição acabou levando adiante a organização dos atos, fazendo questão de marcar importantes distinções com os eventos bolsonaristas, principalmente no incentivo ao uso de máscaras de alta proteção, como as PFF2, e a distribuição gratuita das mesmas em todas as cidades onde as manifestações ocorreram.
Os debates acerca da oportunidade de realização de grandes atos, mesmo com esses cuidados, quando se avizinha uma terceira onda, vão continuar ao longo dos próximos dias. Jornalisticamente, há muitos enfoques a adotar nessa cobertura, que precisa ser feita.
Mas não é
possível ignorar que as manifestações ocorreram e, ao menos na praça mais
emblemática de atos políticos nas últimas décadas, a avenida Paulista, no
coração de São Paulo, ela foi robusta, não ficou restrita aos partidos de
esquerda e mostrou a existência de uma oposição vigorosa, disposta a desafiar
até as recomendações sanitárias que continuam em vigor, para expressar sua
indignação e o sentimento de que uma boa parcela da sociedade não aceitará mais
que o presidente siga tentando ocupar sozinho o espaço público, quase sempre
zombando da pandemia, negando sua gravidade, ignorando o sofrimento das
famílias enlutadas, promovendo desinformação a respeito da propagação da
covid-19 e fazendo ameaças golpistas contra adversários e aqueles que não são
seus seguidores.
As ruas mostraram, pela primeira vez desde que a pandemia começou, o que as pesquisas de opinião já mostravam sem fotos: que aqueles que rechaçam Bolsonaro e sua política negacionista são em maior número que aqueles que o apoiam. A pé, os oposicionistas foram às ruas em maior número que os motorizados e barulhentos motociclistas de Bolsonaro, um fim de semana antes.
E agora, o que
esperar?
A forma
acabrunhada com que os bolsonaristas reagiram, nas redes sociais, aos atos do
29M mostra que sentiram o golpe. Resta saber se vão dobrar a aposta, promovendo
outras manifestações para tentar medir forças com os oposicionistas nas
próximas semanas.
Isso nos leva ao
dilema que havia antes dos atos deste sábado: por mais que se tomem cuidados
como o uso de boas máscaras, manifestações desse tipo promovem aglomerações
difíceis de controlar (dicas como "fique com os que moram com você"
soam entre ingênuas e inócuas, se não forem apenas para inglês ver, mesmo).
A terceira onda
de contágio da pandemia é uma realidade: como se portarão cientistas que até
aqui têm defendido que a vida é mais importante que a política (e é, mesmo)? E
os políticos que têm apontado negacionismo de Bolsonaro, mas neste fim de
semana entoaram clichês negacionistas como "o governo mata mais que o
vírus"? Vale o mesmo para nós, jornalistas, para artistas e todos os que
até aqui se posicionaram do lado da Ciência. Esse compromisso não pode mudar em
nome de um duelo infantil que, no fim, vai resultar no aumento de casos e,
consequentemente, de mortes. Dos dois lados.
A resposta mais
robusta precisa vir das instituições. O fato de as ruas antibolsonaristas terem
falado em voz alta, desafiando a pandemia, serve de alerta para os mercados,
que vinham numa euforia histérica, e para o Centrão, que fecha os olhos a tudo
em nome de polpudas verbas de emendas, abertas ou secretas: não será possível
esquecer só à base de 4% do PIB a escalada de morte, fome, miséria, retrocesso
educacional e de liberdades e chegar a 2022 com o discurso irresponsável de que
a economia terá voltado a crescer.
Além de tudo
porque nada indica que esse crescimento será vertiginoso como cantam as
patativas do mercado. Basta ver a crise de fornecimento de energia elétrica que
começamos a observar, isso com a economia girando bem devagar.
Quanto tempo o
Centrão ficará com o governo, agora que está evidente que ele é repudiado por
grandes parcelas da sociedade, gente de toda cor partidária, gente que votou em
Bolsonaro em 2018, gente que perdeu parentes e não aceita a falta de respeito e
de providências diante da tragédia?
Saber se vai
começar o desembarque dos políticos é o passo mais decisivo para concluir se o
29M terá consequências. E se existe alguma chance de impeachment, hipótese hoje
bastante remota, para não dizer praticamente impossível.
É preciso
inteligência e responsabilidade da parte dos opositores do presidente. O
silêncio de Lula diante dos atos de sábado não é à toa: ele ao mesmo tempo
evitou a armadilha de ajudar a carimbar as manifestações como exclusivamente
petistas, como se preservou para não ser acusado de negacionista.
A mesma discrição
foi vista por opositores que também são governantes, e sabem que amanhã podem
ter de adotar novas medidas restritivas de atividades econômicas, e não querem
correr o risco de serem acusados de hipócritas ou incoerentes.
Não é simples
guiar esse barco num mar que inclui icebergs e nevoeiro para todos os lados.
Mas Bolsonaro está cada vez mais acuado pela CPI e, agora, pelas ruas.
Nesse sentido, o recado do 29M foi bem dado. E histórico.
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