O Estado de S. Paulo
Seguindo o exemplo de Trump, Bolsonaro radicalizou a linha de Maduro, Duda e Modi
Criar inimigos é um clássico do arsenal dos
políticos. Uma anedota conhecida sobre Jânio Quadros conta que, forçado a
aumentar a gasolina, o ex-presidente inventou uma teoria conspiratória e
colocou a culpa nos americanos – outro clássico. Mais tarde, em sua famosa
carta de renúncia, que completou 60 anos nesta semana, Jânio invocou “forças
terríveis”, esperando que parte da população se juntasse a ele no combate a
tais entidades. Não houve clamor popular.
Jânio voltou para casa e amargou mais de 20
anos longe de cargos públicos.
Criar inimigos, em geral imaginários, tornou-se ainda mais fácil na era das redes sociais. “Diante do caos e da complexidade de um mundo em mudança frenética e acelerada, o populismo digital garante o repouso em certezas que não requerem provas”, escreveu Andrés Bruzzone em seu recém-lançado livro Ciberpopulismo. Bruzzone, consultor do Estadão e doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo, é o entrevistado do minipodcast da semana.
Cada populista escolhe o moinho de vento que
lhe parece adequado. Nicolás Maduro, da Venezuela, demoniza as ONGS de direitos
humanos. O polonês Andrzej Duda já vociferou contra os imigrantes muçulmanos –
que são pouquíssimos em seu país – e contra uma suposta conspiração LGBTQIA+. O
indiano Narendra Modi cria leis para amordaçar a imprensa, inimiga clássica de
dez entre dez autocratas.
Seguindo o exemplo de Donald Trump, o
presidente Jair Bolsonaro radicalizou a linha de Maduro, Duda e Modi. Troca de
inimigos como modelos mudam de look no “reels” do Instagram. Seus moinhos de
vento já foram o fantasma do comunismo (uma alma penada), a urna eletrônica
(que nunca deu problema no Brasil) e o “kit gay” (dispensa comentários). O mais
recente é o ministro Alexandre de Moraes. Neste caso há um motivo concreto para
a inimizade: “Quando se trata de livrar os seus familiares e amigos do alcance
da Justiça – afinal, essa é a causa de sua desavença com Alexandre de Moraes –
(Bolsonaro) não tem limites”, escreveu o Estadão em editorial.
Maduro, Duda e Modi são a prova de que a
estratégia do inimigo imaginário pode trazer recompensas. Todos estão no poder
em seus países. Vai funcionar com Bolsonaro? O presidente está em campanha
frenética pela reeleição, mas enfrenta problemas. Sua popularidade vem caindo.
A respeitada consultoria Eurasia, que previu a vitória de Bolsonaro em 2018,
hoje aposta em Lula, e vê uma escotilha aberta para a terceira via.
Com a campanha antecipada a pleno vapor, os
pré-candidatos perceberam que quem não colocasse o bloco na rua ficaria para
trás. João Doria, Ciro Gomes e Eduardo Leite já esquentam os tamborins. A
classe política não vê mais Bolsonaro como um player inexorável em 2022.
Reportagem do Estadão mostrou que vários parlamentares duvidam que o presidente
chegue ao segundo turno. O voto impresso não passou, e o pedido de impeachment
de Alexandre de Moraes foi rejeitado pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco
– ele próprio um possível candidato em 2022.
O cientista político Carlos Pereira levantou, no Estadão, a hipótese de que o presidente, antevendo o próprio fracasso, queira se tornar um mártir para seus apoiadores. Mártires, no entanto, não têm caneta. Como Trump, conseguem sobreviver politicamente – mas, como Jânio, acabam voltando para casa. Cultivar inimigos de forma serial, em modo “reels”, pode não ser uma boa estratégia.
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