O Estado de S. Paulo
Paranoia, autoritarismo golpista e incompetência de Bolsonaro paralisam o Brasil
Agosto foi um típico mês do cachorro louco,
como reza a tradição. A crise política e institucional se aprofundou.
A crise que enfrentamos não deriva do mau
funcionamento das instituições ou de falhas sistêmicas na arquitetura estatal.
É uma crise criada, artificial, provocada por desvios de conduta do presidente
da República. Devem-se a ele tanto as colisões institucionais quanto a elevação
da temperatura política, a um ponto de tensão que ameaça transbordar para o
terreno social. Eleito com uma mensagem contrária ao “sistema”, Jair Bolsonaro
permanece hostilizando as instituições e seus integrantes. A meta é produzir
fumaça, estresse e confusão.
A opinião pública se distanciou do
presidente, mas ainda há fogo no mato, graças à insistência presidencial em
criar atritos, agredir adversários e conclamar seus seguidores a um sem-número
de atos subversivos antidemocráticos. A conduta obstinada, doentia, espalha rastilhos
de pólvora pela sociedade, e até agora não entrou em cena um ator capaz de
desarmá-los.
A crise é, sobretudo, do Executivo e se apoia em dois pilares básicos. O primeiro é o comportamento enviesado do presidente da República, sobre o qual já se gastou tinta em demasia. Não há como esperar dele mudança atitudinal ou posturas cooperativas que desanuviem o ambiente. O segundo pilar é que, a rigor, não há governo no País, somente luta pela manutenção do poder, ação de quadrilhas que brigam entre si. Os ministérios não funcionam, os ministros primam pela mediocridade técnica e intelectual. Não há políticas, diretrizes que organizem a entrega de serviços e direitos aos cidadãos. Em nenhuma área estratégica há gestão qualificada.
Os estragos da pandemia estão associados a
esse quadro. Foram produzidos pela incúria, pelo atraso na compra de vacinas,
pela desinformação, pela propaganda de embustes medicamentosos. Chegamos a 600
mil mortos com o governo indiferente, à cata dos “conspiradores” que o sabotam e
perseguem. A paranoia, o autoritarismo golpista e a incompetência de Bolsonaro
paralisam o País.
As instituições funcionam em condições
agudas de estresse. No Poder Legislativo, a Câmara dos Deputados, graças à
força relativa do “Centrão”, mantém uma porta aberta para os desvarios do
presidente da República, e por ela passam interesses e apetites ilimitados. Por
ora, esse amontoado de políticos fisiológicos calcula que é possível encurralar
o Executivo e extrair dele todo tipo de vantagens. A operação tem sido até
agora bem-sucedida, mas projeta o País para a beira do precipício, precisamente
porque dá sustentabilidade a um governo que não governa.
A Câmara dos Deputados é um retrato da
pulverização política. Os partidos não comandam nem orientam suas bancadas. O
bloco democrático se movimenta com dificuldade e pouca unidade. A agenda
parlamentar de 2021 tem sido desastrosa, flutuando entre disputas estéreis em
torno do voto impresso, da volta das coligações e de reformas – tributária,
econômica, administrativa – que não saem do papel.
Na outra ponta, o Senado funciona de modo
mais ponderado. A CPI da Covid age para isolar e desmascarar o presidente da
República. O Poder Judiciário, em particular o Supremo Tribunal Federal, faz
sua parte como zelador da Constituição. Tem reagido de forma unificada às
pedras lançadas pelo bolsonarismo.
A crise política e institucional mistura-se
com a confusão em que foi lançada a sociedade. Redes sociais hiperativas,
individualidade, oferta incessante de informações, novas formas de
sociabilidade e trabalho encontraram na pandemia, no desemprego e na inflação o
combustível que faltava para a configuração de um “caos estável”, situação em
que tudo está posto em xeque o tempo todo. Boa parte da população brasileira
tem dificuldade de compreender o quadro todo, o que facilita a sua captura pelo
ativismo das redes. Apesar disso, por força do sofrimento cotidiano (a
pandemia, a falta de emprego, a fome, o abandono, a desproteção), olha com
desconfiança o governo.
Bolsonaro tem sofrido derrotas sucessivas.
Afirma ser vítima do “sistema” e fala em “contragolpe”, manobra que serve para
ocultar o mau governo, mobilizar apoiadores e distrair: enquanto os atores são
atraídos pelos jogos de cena, o presidente permanece a aplicar sua estratégia
de demolição.
Como a crise tem um único foco gerador, só
terminará quando esse foco for desativado. Um pacto que promova a eliminação
política do personagem que desafia e achincalha a República encontrará seu eixo
na articulação das instituições do Estado democrático, dos políticos
responsáveis, dos cidadãos ativos e da sociedade civil.
Esse é o fator que poderá expandir a luz
que pisca no fundo do túnel trevoso em que nos encontramos. Os próximos meses
mostrarão se a população estará disposta a abraçar as instituições
referenciadas pela Constituição de 1988 e a trilhar, em conjunto com os
democratas, um caminho que dignifique o país em que vivemos.
*Professor Titular de Teoria Política da Unesp
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