Folha de S. Paulo
Judiciário representa o principal obstáculo
ao projeto de Bolsonaro de subjugar a democracia brasileira
Ao transformar o Judiciário em alvo
preferencial de seus ataques e conclamar
seus apoiadores a comprar fuzis, o presidente aponta com clareza
para a instituição que hoje representa o principal obstáculo ao seu projeto de
subjugar a democracia constitucional brasileira.
A capacidade e disposição do sistema de
justiça para controlar atos abusivos do Executivo constitui uma das mais
importantes variáveis na prevenção de processos de erosão e ruptura de regimes
democráticos. Esse é o resultado de pesquisa seminal produzida pelo V-Dem
Institute, da Universidade de Gotemburgo, na Suécia, que analisou nada menos
que 96 episódios de erosão e ruptura democrática ocorridos entre 1900 e 2019.
O estudo testou as principais hipóteses,
levantadas pela literatura da ciência política nas últimas décadas, referentes
a fatores que contribuiriam para ampliar a resiliência dos regimes democráticos
—como progresso econômico, adoção do sistema parlamentarista ou
presidencialista, natureza do regime político de países vizinhos, ou, ainda, a
quantidade de ciclos eleitorais não interrompidos e a disposição para respeitar
a lei.
A conclusão da pesquisa sugere que “as democracias são mais resilientes quando o Judiciário é capaz de impor fortes limitações ao Executivo”, confirmando proposição de Alexander Hamilton —um dos pais fundadores da República americana— formulada há mais de duzentos anos, de que tribunais independentes são indispensáveis para a “defesa da Constituição e dos direitos contra os efeitos daquelas perturbações que, através das intrigas dos astuciosos ou da influência de determinadas conjunturas, algumas vezes envenenam o povo” (Federalista 78).
O fato de não serem eleitos e de disporem
de garantias institucionais como vitaliciedade ou inamovibilidade, contribui
para que magistrados não sejam tão vulneráveis a eventuais ciclos eleitorais
populistas ou autoritários. Além do que, mesmo em situações adversas,
magistrados são obrigados a dar respostas públicas e legalmente fundamentadas a
reivindicações de grupos minoritários e discriminados, conjunturalmente
derrotados no campo da política eleitoral. Essas características, entre outras,
justificam que a função de guardião último da Constituição seja atribuída ao
Judiciário e não a outros órgãos subordinados ou vulneráveis à influência da
maioria política de ocasião.
A centralidade do sistema de justiça na
defesa da ordem constitucional também explica o porquê da violência contra os
tribunais, do expurgo de juízes e da nomeação de títeres togados por autocratas
como Viktor Orbán, na Hungria, Recep Tayyip Erdogan, na Turquia, ou mesmo Hugo
Chávez, na Venezuela.
Nesse sentido, fez bem presidente do
Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), em indeferir
liminarmente o pedido de impeachment de Alexandre de Moraes, por
falta de justa causa, demonstrando que o Senado não será cúmplice da investida
autoritária sobre as cortes no Brasil. Também importa dizer que a confiança no
STF vem crescendo substantivamente neste período, como demonstra o Índice de
Confiança na Justiça Brasileira de 2021, levantamento da FGV Direito de São
Paulo.
Como parece estar ficando cada vez mais
claro para a maior parte dos magistrados brasileiros, na vereda aberta pelo
Supremo Tribunal Federal, pelo Tribunal Superior Eleitoral e paulatinamente
pelo Superior Tribunal de Justiça, não há como abdicar da responsabilidade de
aplicar a lei, garantir direitos e assegurar a integridade do processo
democrático, sem trair sua missão constitucional. Além do que, temos aqui uma
questão de sobrevivência institucional.
*Professor da FGV Direito SP, mestre em
direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
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