O Estado de S. Paulo
Decisivo entender: no atual arsenal de
ataque antidemocrático, a mentira é a principal arma.
A democracia está sob ataque! Para que os
dias não se guiem por ilusões ou enganos, é preciso chamar os fatos pelos nomes
que realmente os definem. Os atentados à vida democrática tornaram-se uma marca
destes tempos tão inacreditáveis. Ter essa consciência é crucial para a impositiva
agenda dos defensores das liberdades e garantias humanísticas, civis, políticas
e cidadãs, conquistas também essenciais ao alcance e à manutenção da
prosperidade sustentável e compartilhada.
Nesse sentido, há outras questões que
demandam um olhar realístico. Decisivo entender que, no atual arsenal de ataque
antidemocrático, a mentira é a principal arma da estratégia para fulminar
pilares e valores da democracia. Tanques, navios, aviões, etc. mantêm sua
relevância, mas o mais decisivo e letal recurso para sufocar as democracias são
as inverdades, inclusive com fabulação de inimigos imaginários para ludibriar
os de boa-fé ou nutrir comportamentos raivosos.
Turbinados especialmente via redes sociais, boatos, fake news e mentiras impedem ou confundem o diálogo equilibrado e racional entre cidadãos. Adicionalmente, fomentam o ódio e a intolerância, transfigurando adversários em inimigos, ensejando a extinção do que não é espelho, fulminando a convivência dos contrários e diversos, uma riqueza da existência humana.
Uma outra peculiaridade do autoritarismo
contemporâneo: em geral, não se toma o poder com golpes súbitos, nem se
implodem as instituições simplesmente cerrando-lhes as portas, prendendo e
exilando. Ascende-se ao poder por meio de eleições e, mantendo-se a aparência
de realidade democrática, perpetra-se um desmonte da democracia “por dentro
dela”, usurpando-a muitas vezes com o insistente uso abusivo dos seus próprios
mecanismos.
Ou seja, além da tragédia da pandemia do
novo coronavírus, padecemos de um ataque pandêmico à democracia – e, como no
caso sanitário, com peculiar gravidade em nosso país. A invasão do Capitólio,
nos EUA, mostra que nem mesmo um regime democrático consolidado está imune ao
vírus do autoritarismo. A União Europeia (UE) lida com retrocessos crescentes
no seu próprio território. O Brexit foi atravessado por manipulação e
desvirtuamento do debate. A escalada autoritária na Turquia, candidata à UE,
assombra o mundo.
A vida em coletividade não é caminhada
simples. Mas a organização perversa das sociedades, com o empoderamento do mais
forte ou do mentiroso mais eloquente e a supressão sistemática do
contraditório, só piora a realidade. Basta olhar para a vitrine do passado para
enxergar as tragédias que os regimes autoritários produzem.
Assim como a História nunca termina, a
democracia não é um regime pronto e acabado. Também não é perfeito. Mas é, de
longe, a melhor invenção humana para organizar a conquista e o exercício do
poder em sociedades livres e devotadas à justiça social.
Nem o discurso de crescimento a qualquer
custo se sustenta. Vitalidade econômica sem democracia é riqueza pela metade,
pois tais regimes, além de serem afetados por recorrentes tensões
desestabilizadoras, são promotores de opressões e discriminações. Lembrando a
poética dos Titãs, o humano “não quer só comida”, “quer comida, diversão e
arte”, “quer inteiro e não pela metade”.
A História não tem destino prescrito e
estamos “condenados” a inventar a nossa própria trajetória como indivíduos e
como espécie, conforme escreveu Sartre, a liberdade é direito e patrimônio
inarredável da condição humana. E a democracia é um regime garantidor dessa
prerrogativa existencial inalienável.
Desse modo, ela precisa ser ensinada a cada
um que nasce, além de ser cultivada por todos os que caminham na marcha do
tempo. Deve ser uma bandeira daqueles que apostam na dignidade humana, na
cidadania e no desenvolvimento inclusivo. Democraticamente livres, os povos
podem efetivar o melhor de suas capacidades e potencialidades, em benefício de
cada um e de todos.
Neste momento em que os ataques à
democracia se espalham e se modernizam, é preciso que tenhamos, como sociedade
política e sociedade civil, lucidez para entender as novas condições e
determinantes dessa espantosa trincheira aberta bem no coração do reino das
liberdades.
A saída para a vida e seus desafios não
pode ser a via dos retrocessos. Até porque já tivemos de superar todo este
entulho que se tenta reavivar na marra, especialmente com base em falácias e
ilusões em rede, que podem até parecer inofensivas, mas que na verdade são
mortalmente corrosivas para a cultura democrática.
Contra a mentira, lutemos pela restauração
da verdade factual como laço social. Contra a disseminação do ódio, lutemos
pela cultura da empatia e da fraternidade. Contra o aniquilamento moral das
diferenças, lutemos pela conciliação das diversidades. Contra o obscurantismo,
lutemos pela racionalidade e pela ciência. Contra o messianismo, apostemos na
valorização e atualização das instituições do Estado de Direito. Contra o
autoritarismo e todo o seu retrocesso, estejamos unidos em defesa da
democracia.
*Economista, presidente-executivo da IBÁ, membro do Conselho do Todos pela Educação, foi governador do Estado do Espírito Santo (2003-2010/2015-2018)
Nenhum comentário:
Postar um comentário