terça-feira, 7 de setembro de 2021

Paulo Hartung* - Em defesa da democracia

O Estado de S. Paulo

Decisivo entender: no atual arsenal de ataque antidemocrático, a mentira é a principal arma.

A democracia está sob ataque! Para que os dias não se guiem por ilusões ou enganos, é preciso chamar os fatos pelos nomes que realmente os definem. Os atentados à vida democrática tornaram-se uma marca destes tempos tão inacreditáveis. Ter essa consciência é crucial para a impositiva agenda dos defensores das liberdades e garantias humanísticas, civis, políticas e cidadãs, conquistas também essenciais ao alcance e à manutenção da prosperidade sustentável e compartilhada.

Nesse sentido, há outras questões que demandam um olhar realístico. Decisivo entender que, no atual arsenal de ataque antidemocrático, a mentira é a principal arma da estratégia para fulminar pilares e valores da democracia. Tanques, navios, aviões, etc. mantêm sua relevância, mas o mais decisivo e letal recurso para sufocar as democracias são as inverdades, inclusive com fabulação de inimigos imaginários para ludibriar os de boa-fé ou nutrir comportamentos raivosos.

Turbinados especialmente via redes sociais, boatos, fake news e mentiras impedem ou confundem o diálogo equilibrado e racional entre cidadãos. Adicionalmente, fomentam o ódio e a intolerância, transfigurando adversários em inimigos, ensejando a extinção do que não é espelho, fulminando a convivência dos contrários e diversos, uma riqueza da existência humana.

Uma outra peculiaridade do autoritarismo contemporâneo: em geral, não se toma o poder com golpes súbitos, nem se implodem as instituições simplesmente cerrando-lhes as portas, prendendo e exilando. Ascende-se ao poder por meio de eleições e, mantendo-se a aparência de realidade democrática, perpetra-se um desmonte da democracia “por dentro dela”, usurpando-a muitas vezes com o insistente uso abusivo dos seus próprios mecanismos.

Ou seja, além da tragédia da pandemia do novo coronavírus, padecemos de um ataque pandêmico à democracia – e, como no caso sanitário, com peculiar gravidade em nosso país. A invasão do Capitólio, nos EUA, mostra que nem mesmo um regime democrático consolidado está imune ao vírus do autoritarismo. A União Europeia (UE) lida com retrocessos crescentes no seu próprio território. O Brexit foi atravessado por manipulação e desvirtuamento do debate. A escalada autoritária na Turquia, candidata à UE, assombra o mundo.

A vida em coletividade não é caminhada simples. Mas a organização perversa das sociedades, com o empoderamento do mais forte ou do mentiroso mais eloquente e a supressão sistemática do contraditório, só piora a realidade. Basta olhar para a vitrine do passado para enxergar as tragédias que os regimes autoritários produzem.

Assim como a História nunca termina, a democracia não é um regime pronto e acabado. Também não é perfeito. Mas é, de longe, a melhor invenção humana para organizar a conquista e o exercício do poder em sociedades livres e devotadas à justiça social.

Nem o discurso de crescimento a qualquer custo se sustenta. Vitalidade econômica sem democracia é riqueza pela metade, pois tais regimes, além de serem afetados por recorrentes tensões desestabilizadoras, são promotores de opressões e discriminações. Lembrando a poética dos Titãs, o humano “não quer só comida”, “quer comida, diversão e arte”, “quer inteiro e não pela metade”.

A História não tem destino prescrito e estamos “condenados” a inventar a nossa própria trajetória como indivíduos e como espécie, conforme escreveu Sartre, a liberdade é direito e patrimônio inarredável da condição humana. E a democracia é um regime garantidor dessa prerrogativa existencial inalienável.

Desse modo, ela precisa ser ensinada a cada um que nasce, além de ser cultivada por todos os que caminham na marcha do tempo. Deve ser uma bandeira daqueles que apostam na dignidade humana, na cidadania e no desenvolvimento inclusivo. Democraticamente livres, os povos podem efetivar o melhor de suas capacidades e potencialidades, em benefício de cada um e de todos.

Neste momento em que os ataques à democracia se espalham e se modernizam, é preciso que tenhamos, como sociedade política e sociedade civil, lucidez para entender as novas condições e determinantes dessa espantosa trincheira aberta bem no coração do reino das liberdades.

A saída para a vida e seus desafios não pode ser a via dos retrocessos. Até porque já tivemos de superar todo este entulho que se tenta reavivar na marra, especialmente com base em falácias e ilusões em rede, que podem até parecer inofensivas, mas que na verdade são mortalmente corrosivas para a cultura democrática.

Contra a mentira, lutemos pela restauração da verdade factual como laço social. Contra a disseminação do ódio, lutemos pela cultura da empatia e da fraternidade. Contra o aniquilamento moral das diferenças, lutemos pela conciliação das diversidades. Contra o obscurantismo, lutemos pela racionalidade e pela ciência. Contra o messianismo, apostemos na valorização e atualização das instituições do Estado de Direito. Contra o autoritarismo e todo o seu retrocesso, estejamos unidos em defesa da democracia.

*Economista, presidente-executivo da IBÁ, membro do Conselho do Todos pela Educação, foi governador do Estado do Espírito Santo (2003-2010/2015-2018)

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