Folha de S. Paulo
Na busca pela purificação coletiva, novos
evangelistas só confiam na própria consciência
José De Paula Ramos Jr., professor do curso
de editoração da ECA-USP, dedica-se a (re)descobrir e oferecer ao público
textos literários de qualidade que foram esquecidos pelo mercado editorial.
Na disciplina que ministra, orienta o
trabalho dos alunos na edição dessas obras para publicação pela parceria
Com-Arte/Edusp, na coleção Reserva Literária. Contudo, o romance que selecionou
no semestre em curso não chegará às livrarias. Motivo: os alunos julgaram a
obra culpada de crimes de preconceito.
"Romance Tropical", de 1944, foi
escrito por Théo-Filho,
autor que fez sucesso antes da Guerra Mundial mas, depois, saiu do radar das
editoras.
Os alunos, do segundo ano de graduação,
decidiram conservá-lo no exílio literário pois identificaram passagens
"sexistas" e "machistas", além de outras pouco respeitosas
com religiosidades afro-brasileiras e católica.
O romance será editado, como trabalho acadêmico, mas não publicado. Todos ficarão protegidos da palavra desviante.
O caso poderia ter ocorrido nos EUA, pátria
da "censura do bem". A moda, porém, chegou com força ao Brasil,
importada pelas políticas identitárias.
Inconformado, De Paula experimentou
diversos argumentos. Vocês censurariam as obras libertinas do Marquês
de Sade? Proibiriam "Lolita", de Nabokov? O que fariam com Monteiro
Lobato? O cinto de castidade da moral deve cingir a literatura, a estética?
Finalmente, sugeriu salvar a publicação
pela adição de notas editoriais inscrevendo as passagens heréticas no contexto
das atitudes e preconceitos da época. Nada: os novos evangelistas não admitem
conciliações. "Estamos diante da cultura a-histórica do
cancelamento", concluiu De Paula.
O herói de "Romance Tropical" é
um contrabandista de madeiras nobres e um invasor de terras —mas isso passou
incólume pela censura dos alunos. A caneta vermelha tem, exclusivamente, alvos
identitários.
Comporta-se, no fundo, como a dos
fundamentalistas religiosos, invertendo apenas os sinais da virtude e do vício.
Censura é, antes de tudo, um julgamento
sobre a inteligência dos outros. Ao vetar a obra, os jovens estudantes de
editoração dizem que a sociedade não é constituída por cidadãos plenos, mas por
idiotas incapazes de datar as ideias, distinguindo passado e presente.
A implicação é que a democracia não
funciona: um poder intelectual superior –no caso, eles mesmos– deve traçar um
círculo de giz em torno das ideias proibidas. Quantos milhares de livros os
"censores do bem" terão que queimar numa fogueira purificadora até completar
a tarefa da limpeza das almas?
Os alunos não são pioneiros. O "Index
Librorum Prohibitorum"
da Igreja Católica sedimentou-se após o Concílio de Trento, sob Pio 4º, em
1564.
Sua versão derradeira, de 1948, vetava a
leitura de cerca de 4.000 obras, inclusive de Dante
Alighieri, Kant, Locke, Maquiavel, Stuart Mill, Gibbon, Victor Hugo e John
Milton.
O objetivo era evitar a corrupção da moral
e a contaminação da fé. Os livros proibidos foram rotulados como heréticos,
imorais ou libertinos. Os evangelistas da ECA operam com critérios similares,
apenas adaptados à sua religião secular.
A literatura, como as demais artes, reflete
a experiência humana, nas suas dores e delícias, nos seus caminhos retos e,
principalmente, nos seus tortuosos desvios.
A busca pela purificação coletiva
empreendida pela turma que censurou "Romance Tropical" é uma tácita
declaração de guerra à cultura. Os jovens censores não se engajam na ampliação
das estantes, pela produção de textos novos, mas na rarefação das bibliotecas,
por meio do extermínio de textos antigos.
O Index da Igreja foi abolido em 1966, quando a Congregação para a Doutrina da Fé entregou à consciência dos fiéis a decisão sobre quais livros precisariam ser evitados. Os novos evangelistas não concordam, pois só confiam na própria consciência.
2 comentários:
Magnoli fala das atuais fogueiras de livros, que não necessitam de fogo e estardalhaço, apenas ignorância e "bons propósitos" Lamentável.
Burrice simples dos autoritaristas! O que seria da humanidade sem a corrupção da moral? E a fé tosca e mentirosa de bilhões de indivíduos.
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